segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Conto para o concurso "Contos de Nova Ether"

O Corcunda da Sagrada Criação


   - Só o que você precisa fazer é confiar em mim – disse a mulher, estendendo a mão ao oprimido - Confia em mim?
   O oprimido, dentro de todas as limitações de sua mente, sabia que, um só movimento que fizesse, mudaria sua vida para sempre. Mas havia algo naquela mulher, naqueles longos cabelos escuros, naquele olhar verde e brilhante, que despertava um sentimento novo dentro dele. Um sentimento puro.
   Um sentimento que lhe inspirava coragem.
   Ele não entendera o que a mulher tinha dito, mas aquele olhar lhe esclarecia tudo. E, sentindo as feridas de sua enorme corcunda arder como se estivessem em brasa, esticou o braço e envolveu a mão pequena e calejada da mulher.
   E sua vida mudara para sempre.
***
   Ele nunca confiara em ninguém, para começo de conversa. Em sua vida tudo o que conhecera fora a solidão... E o desprezo. E nem mesmo tinha percebido o quanto se sentia triste por isso.
   Até conhecê-la.
   Pois antes de conhecê-la, nada conseguira de ninguém. Nada viera de alguém para as mãos dele, não sem um custo. Em cada dia que começava, recomeçava com ele uma mesma guerra, de mil e uma batalhas diferentes que travava para sobreviver.
   Tinha de batalhar por comida, água, roupas... E isso nem chegava perto da verdadeira batalha que travava todos os dias, de onde, quase sempre, saía perdedor.
   A batalha para ficar invisível.
   Desde cedo descobrira que havia algo de muito errado com ele. Algo que incomodava as pessoas, que as afastavam dele. Provavelmente o mesmo algo que afastara sua família, a qual nunca conheceu.
   Mas as coisas começaram a mudar quando, por mais uma vez, o Festival dos Tolos se aproximava. O festival começara muitos anos atrás como uma celebração ao sucesso da famosa Caçada de bruxas, liderada pelo amado Rei Primo Branford. Aliviado pela promessa de que todas as bruxas tinham sido erradicadas do Reino, o povo não conseguiu fazer mais nada além de sair às ruas e comemorar.
   Muita coisa já havia acontecido depois da Caçada, o reino já havia sofrido ataques de piratas, ameaças de mais bruxas más, torneios de pugilismo, uma guerra mundial, uma revolução em sua tecnologia... Depois de Anísio Branford, novos Reis vieram, e junto com eles muitas novidades. Era uma pena que o medo de magia negra ainda perdurava. E o pior, muitas magas brancas ainda corriam o risco de serem confundidas com suas rivais. Era raro, mas podia acontecer.
   Ah se podia!
   Mas sim, voltemos ao Festival. As pessoas comemoravam dançando, pulando e encenando bruxas sendo subjugadas. E a cada ano, naquela mesma data, ele se repetia. Mesmo a nobreza, que taxara a festa da plebe como a um festival de tolos, rendeu-se a ela.
   Porém, havia uma pessoa em todo o reino que nunca participara do Festival dos Tolos, que jamais tivera da festa nada além de rápidas espiadas por de trás de colunas, e nada além de sons que mal chegavam aos seus quase surdos ouvidos.
   Já percebeu quem é este ser miserável, não?
   Pois sim, o oprimido. Que foi com quem essa história começou.
   Mas por que oprimido? Bom, se queres razões, aqui vão algumas: o pobre coitado tinha uma aparência lastimável. O rosto era inteiramente deformado, com um dos olhos a sobressaltar-se e o outro a quase não conseguir se abrir. As pernas tinham tamanhos disformes, os braços eram quase tão grossos quanto troncos de jovens salgueiros. E, aquela que era a sua característica mais proeminente, a que mais chamava atenção, a que mais repugnava...
   Uma corcunda.
   Não qualquer corcunda, mais uma enorme elevação que brotava de suas costas e o forçava a vestir lençóis grossos e velhos, pois nenhuma roupa lhe servia, nem mesmo aquelas fabricadas pela alfaiataria da família Farmer, que se orgulhava em costurar apenas para os maiores e mais fortes homens.
   É claro que o oprimido não tinha condição nenhuma de pagar vestes, mas mesmo que tivesse, não haveria alfaiate naquele reino que se dignasse a costurar alguma coisa pra ele. Pois as pessoas de Arzalum, dos plebeus aos nobres, acreditavam que aquele ser oprimido era marcado. Ou seja, acreditavam que ele tinha sido tocado por uma bruxa, alvo de alguma maldição, ou que fosse uma ferramenta de algum plano macabro.
   Era um pensamento comum. E o oprimido também acreditava nisso. Não conseguia entender como alguém poderia nascer como ele se não fosse por intermédio de magia negra.
   Desde que se lembrava, estivera rondando pelas ruas de Andreanne, sem família e sem casa. Fora aturado quando pequeno, mas ao crescer passou a ser repudiado em cada lugar que era visto. Até mesmo deram-lhe um nome, ofensivo, sim, mas pelo menos era como aprendera a ser chamado: Quasimodo.
   Foi então que recebera abrigo na Capela da Sagrada Criação. E este fora o ponto alto de sua vida até o momento. O Clérigo Diógenes Nordan o acolhera, dera-lhe um teto no campanário, comida...
   Mas também uma missão.
   Tocar, de hora em hora, o único sino da capela, cujo sineiro havia falecido há poucos dias. Por causa disso, através dos anos que passaram, Quasímodo perdera quase metade da audição, mas não reclamava, tinha se afeiçoado ao instrumento, e adorava mudar os ritmos, os tons... Então, já que ia ficar surdo de qualquer jeito, ele alimentara a esperança de finalmente ver de perto, e ouvir, as maravilhas do Festival dos Tolos.
   E foi o que fez.
   Ninguém o viu sair da capela, e era pra continuar assim. Ficaria disfarçado, coberto do enorme capuz que improvisara, e se tudo desse certo estaria de volta antes que o tempo de uma hora se esvaísse e tivesse de voltar para tocar o sino.
   É claro que deu tudo errado. E por isso, saiba você, aquele Festival dos Tolos seria lembrado por muitos e muitos anos.
   A praça central de Andreanne estava lotada. O Festival dos Tolos tinha deixado de ser exclusivamente local, e pessoas de outros reinos também compareciam. E isso o maravilhava: a quantidade de pessoas, as diferenças entre elas, tanto no comportamento quanto na aparência física, e também a beleza. Vira pessoas muito belas naquela tarde. E mesmo que sua audição fosse prejudicada, conseguira se entreter com a música, com o teatro e as conversas.
   Mas a alegria não durou.
   A barra de seu manto se enganchou em alguma coisa, retesou e o despiu. Não demorou para que o povo percebesse quem estava ali.  Para muitos a visão do sineiro fora assustadora. Para outros, digna de pena, e para a grande maioria, motivo de piada. O álcool fizera seu papel, deixando todos alvoroçados, sem escrúpulos, sem limites.
   Quasímodo fora arrastado para o palco contra sua vontade. Não o julgue pela falta de ação, seus músculos de braços gigantes não eram nada em comparação àquelas costas sem corcunda e aqueles rostos bem formados que o encaravam.
   O vestiram com roupas coloridas, pintaram seu rosto, puseram-lhe chapéus com chifres... E riram. Riram muito. O que começou como uma brincadeira de extremo mau gosto tornou-se uma atividade cruel. Quasímodo viu-se com as mãos atadas às costas, alvo de lixo, bebidas, pedras...
   Bem, é ai que voltamos àquela parte em que eu iniciei a história.
   Quasímodo fora salvo pela jovem morena de olhos verdes. Diante de todos, a moça não tremera, subira ao palco e o libertara. Ela ofereceu-lhe a mão, e ele aceitou. A jovem, que usava roupas estranhas, cheias de cores e enfeites que balançavam e tilintavam, o levou às pressas para os fundos do palco. De lá saíram para a praça, abrindo caminho a força entre a multidão, até que chegaram a um beco.
   Antes que a multidão os impedisse, a moça tirara do decote um pacotinho preto, o abrira e deixara cair na mão um pó da mesma cor.
   - Vou mandá-lo para um lugar seguro! Fique lá até que as coisas se acalmem! – tirou do punho uma pulseira, com a figura de uma cabra a balançar, e dera a ele – Guarde isso!
   Ela atirou com força o pó no chão, não sem antes pisar firme num falso paralelepípedo abaixo dela. Uma nuvem negra se ergueu. Quasímodo ouviu alguém gritar “Bruxa!” enquanto caia num buraco fundo.
   Estava sozinho num túnel. Mas andou desesperado, seguindo sempre em frente, passando por debaixo de Andreanne. Chegou numa rede de esgotos, que ele sabia ser a antiga casa de lendárias organizações criminosas. Continuou andando, andou quase o dia inteiro até que chegasse ao fim do túnel. Olhou para cima e viu um alçapão. Tentou abrir, mas estava trancado.
   Segundos depois ele foi aberto por uma mulher. Era bonita também, loira, esbelta. A coitada assustou-se quando Quasímodo elevou-se para o cômodo. Mas ele já estava acostumado com isso.
   - Ninguém conhece essa passagem além de amigos... – disse trêmula – Quem te mandou?
   Quasímodo não escutara o que ela dissera, mas entendeu o que ela queria. Mostrou a pulseira que segurava. Ao ver o objeto, a moça pôs as mãos na boca. Não estava só assustada, estava com medo.
   - Aquela idiota! Posso adivinhar o que aprontou – disse isso olhando Quasímodo nos olhos. E gritou – Ela te ajudou, não foi?
   Quasímodo fez que sim.
   - Ela vai pra fogueira, aquela inconsequente!
   Quasímodo entendera, ouvira falar muito de fogueiras vindo da boca dos outros. Sabia o que tinha de fazer.
   - Qual o nome dela? – perguntou em grunhidos.
   A moça loira respondeu. Era um nome lindo, combinava com ela. Com os olhos dela.
   O oprimido desceu de volta ao túnel.
   - O que está fazendo? Não pode voltar, se ela te mandou pra cá...
   - Eu não sou uma maldição... – disse Quasímodo, daquele jeito que parecia um rosnado – Não quero ser.
   - E o que pretende fazer? – disse a moça quase gritando. Devia ter percebido que ele era surdo.
   - Farei o meu melhor. – e voltou-se para a escuridão, caminhando de volta à cidade. O escuro era tão mais confortável.
    Vou salvar Esmeralda.”