sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Desafio #4 Projeto Pena e Nanquim - Guerra, Morte e Sangue.

Redenção

– Antonio Caetano –

Sebastian fez Fúria transpassar o velho.
A barba branca e pontuda da velha raposa ficou empapada com a baba que vazava suja de sangue.
A espada perfurou e destruiu o que encontrou. Armadura, cota de malha, esterno e coração. Cortando e invadindo. A sensação não era nova para o guerreiro. Matara seu primeiro oponente os dezesseis anos, e aos 23 já havia perdido a conta dos que morreram por Fúria.
Transpassar.
Era assim que ele preferia matar. Sentia como se invadisse o direito à vida do outro. Como se violentasse aquela forma de vida que dependia apenas dele para prosseguir. E enquanto podia, enquanto era possível, transpassava.
A morte causada pela espada alimentava velhas e familiares necessidades. Não era como espetar terra fofa, como se lembrava de ter feito diversas vezes, brincando com uma espada de madeira na fazenda onde cresceu. Havia diferentes estágios da perfuração no corpo, e sentia no punho cerrado esses estágios.  A vestimenta férrea da armadura não provia tanta graça, pois não era viva. Mas a pele, a carne e o osso, com tantas texturas diferentes, interligando-se em laços de vida e morte, essas sim eram sensações dignas de um homem experimentando a vitória em batalha.
Mas abrir alguém à lâmina era só a primeira parte. O corpo se abria e as sensações que isso trazia eram únicas. Na febre da batalha essas sensações eram prazerosas, catárticas. O sumo da vida fluía, água e sangue vazavam, banhando o corpo do oponente, a terra e a si mesmo. Mas nada era mais impressionante do que o momento em que a alma deixava o corpo. E aquele momento, ele tinha certeza, podia ser visto nos olhos do derrotado. As pupilas dilatavam, abriam-se como o corpo transpassado. O negro da morte expandia-se nos olhos do oponente, e a alma escapava. 
O dono de Fúria era um filho da guerra. Era feito de guerra. E a guerra em que lutava agora mudaria tudo, formaria tudo, e ao mesmo tempo em que destruiria, construiria. Todos os outros lutavam pelo mesmo motivo, mas ele tinha um motivo particular. Só queria saber a verdade. E mataria quem encontrasse na frente para consegui-la.
*
Antes o mundo vivia em paz. Ou pelo menos um período de paz entre guerras. Lembrava de correr por pastos sem fim, de escalar em árvores e se banhar em rios. Ajudava seu pai no serviço. Seu pai, olhos claros, arregalados e imóveis, de pupilas dilatadas.
No dia da morte do pai estava ao lado dele, ajudando no arado. Havia atirado uma pedra em um passarinho pousado em um arbusto. O pai, que era sério quase todo o tempo, o repreendera e envolvera o passarinho em suas mãos enormes. As mesmas mãos que partiam a lenha e que aravam a terra mostravam-se delicadas, acariciando o corpinho diminuto do pássaro. Lembrava de ter perguntado ao pai sobre a muralha naquele momento.
“O que tem além da muralha, papai?”
“Porque essa pergunta agora, menino?”
“Todo mundo fala que temos que ir pra lá, e que lá é bom.”
O pai estava concentrado na massagem que fazia no passarinho.
“Nossa vida é aqui.”, dissera o pai.
Ele não entendia muito das coisas que o pai dizia, a não ser as coisas que ele era mandado fazer.
“Mas mamãe diz que todo mundo está indo pra lá. E que deveríamos ir também. Que lá é mais seguro. Pra quando a muralha sumir, agente poder ir pro outro lado...”
“Nossa vida é aqui”, dissera o pai novamente. “As pessoas só tem que fazer aqui o que esperam encontrar lá.”
Igual das outras vezes, o menino não entendera.
“Como?”
“Comece fazendo isso”, disse o pai sério, enquanto estendia as mãos ao filho, oferecendo o passarinho. O ensinara a aquecer o animal com o hálito e a lhe alisar as costas. O pássaro alçou vôo logo depois. Pelo jeito não estava tão machucado, afinal.
Já quase escurecia quando pai e filho caminhavam juntos na volta pra casa. No meio do caminho um grupo de cinco homens – lembrava que eram cinco, pois tinha acabado de aprender os números e havia contado os homens diversas vezes – se aproximou. Ele não entendia o que queriam, mas falavam de uma espada. Queriam uma espada. O pai não dera – é claro, o pai não tinha espada, só uma enxada – e disse aos cinco homens que deviam ir embora.
Eles não foram embora. Um deles gritou. O outro apontou para o menino, e foi aí que o pai gritou e bateu no homem. O pai batera em outros homens, e eles revidaram. O garoto não fizera nada. Não podia fazer nada. Não gritara, não chorara. Aquilo era mau, mas ia acabar. Sabia que o pai conseguiria, pois o pai iria deixá-los seguros, como sempre fizera. Um dos homens, ele lembrava que era o mais velho, feriu o pai com a espada. Lembrava da ponta dela aparecer vermelha pelas costas do pai, como um espinho sendo espremido pra fora. O homem mais velho puxara a espada de volta, e o pai caíra.
O guerreiro não se lembrava dos rostos dos homens. Queria lembrar. Queria guardar na memória os rostos dos assassinos de seu pai e de sua mãe. Nem ao menos lembrava o rosto de sua mãe. Sobre a morte dela sabia menos ainda. Apenas o que os outros lhe contaram. De como o menino arrastara o corpo do pai de volta, e de como cinco homens haviam incendiado a casa com sua mãe dentro. Nada do que contaram mais tarde acendera mais lembranças pra ele. Só se lembrava do rosto do pai, e de como estava pálido, e de como os olhos claros dele tinham as pupilas dilatadas.
Hoje não lembrava quase nada. Lembrava que havia cinco homens, mas não lembrava seus rostos. Lembrava que eles queriam uma espada, mas não se lembrava de ter escutado o motivo. A espada que queriam estava com ele agora. A espada que tinha o nome de Fúria escrito no aço.
Os cinco homens queimaram a casa sem saberem do alçapão debaixo da cozinha. Era lá que Fúria estava. O pai a guardara bem seguro e nem mesmo sua esposa jamais soube. A pobre mulher morrera protegendo algo que não sabia existir.
Hoje o guerreiro tinha apenas muitas perguntas. E ela se formara quando o fazendeiro, vizinho e amigo da família, o homem que o tinha criado, lhe contara algo sobre a espada.
“O seu pai uma vez falou que esteve do outro lado da muralha, bem antes de ter casado com sua mãe. Eu costumava implicar com ele por causa disso, sabe? Ele dizia que trouxera um tesouro de lá, uma espada muito bonita, de um metal que ele nunca tinha visto. Eu, ainda sem acreditar, pedia pra ver a tal espada. Mas ele nunca me mostrou, e nem a ninguém, dizia que podia ser perigoso. Por muito tempo pensei que fosse mesmo mentira, e que essa espada não existisse. E mesmo ele jamais voltara a tocar no assunto. Mas agora, aqui está ela, bem na minha frente! Precisamos escondê-la outra vez, e você não pode contar a ninguém sobre ela, entendeu menino?”
A pergunta que queimara dentro do menino transformara-se em um objetivo. Um sonho. Uma obsessão que não o abandonara desde o dia em que ouvira a história sobre o pai e Fúria. Iria atravessar a muralha. Algo sobre esse lugar o remetia ao seu pai. Não tinha esperanças bonitas sobre lá, nem qualquer ilusão sobre uma vida melhor. Sua vida fora consumada anos atrás. Mas precisava saber desesperadamente sobre Fúria. Precisava saber o que a espada significava e o quanto valia. Ela tinha de valer alguma coisa! Sua família morrera por ela. E precisava saber a quem pertencia.
Pertencera. Ninguém a tomará de mim.
*
Tudo sobre a muralha era um mistério. Na época em que o pai de Sebastian nascera foi quando ela surgiu. Simplesmente aparecera, era o que diziam. Um dia não estava lá, e no dia seguinte estava. Logo todos se perguntavam o motivo disso. Não era coisa de gente, isso com certeza. Para uns, a muralha era coisa de Deus, para outros, de Deuses. E da Sombra, para poucos. Uma opinião permanecia universal: estavam sendo isolados.
Muitos eram aqueles que também almejavam atravessar a muralha. E muitas tentativas de derrubá-la ou perfurá-la foram feitas. Sua extensão era enorme, e por mais que caminhassem acompanhando-a, jamais encontravam um fim, ou sequer uma falha. Não se sabia se a muralha os mantinha presos, ou se prendia alguma coisa. Ela também não fazia sombra, motivo de dor de cabeça dos estudiosos.
Também não se via o topo. Era mais alto que as nuvens, mais alto do que qualquer pássaro poderia voar. E mesmo sem ninguém jamais ter visto o topo, muitos tentaram escalá-la. Todos morreram tentando. Por mais que os cuidados fossem tomados, e que ano após ano geringonças cada vez mais elaboradas fossem construídas, para auxiliar na escalada, a muralha simplesmente derrubava a todos, implacável.
Com o passar do tempo a palavra dos sacerdotes tornara-se a única creditada – porque os investigadores e estudiosos simplesmente não conseguiam chegar à conclusão alguma –, embora facções diferentes começassem a rivalizar, cada uma tendendo para lados diferentes da suposta verdade. Enquanto um grupo dizia que a muralha era um castigo, um aviso, e um símbolo da vergonha humana, o outro grupo dizia que ela era o alicerce que passara a segurar as duas metades do mundo, que havia se partido. E havia aqueles que acreditavam que um motivo era a causa do outro.
Todo o dia, no mesmo horário em que se sabia que a muralha tinha surgido, crentes paravam o que estavam fazendo e começavam a rezar na direção da mesma, pedindo perdão e sabedoria. E uma vez por ano, na data do surgimento, a grande peregrinação acontecia, levando milhares de crentes a se lamentar na muralha. Faziam pedidos, faziam promessas e agradeciam. Tornara-se costume escrever na muralha o que se desejava alcançar; uma graça, um milagre. Sendo a grande maioria o nome de pessoas enfermas, para que se curassem.  
Cidades foram construídas às margens da muralha. O pensamento geral era que, se um dia ela surgira do nada, talvez desaparecesse da mesma forma. E assim, quem estivesse perto para presenciar, finalmente compreenderia.
Fosse o que fosse, independente de qualquer coisa, a muralha continuava lá, vasta e infinita, avançando por sobre terras e mares. Sendo intransponível e desejada. Ignorando a todos. E jamais sendo esquecida.
*
A guerra pela posse da muralha tivera início há pouco mais de um ano. Mas desta vez era diferente. A impressão que se tinha era que o mundo se acabaria com esta guerra, e que desta vez seria tudo ou nada.
A tensão iniciada há setenta anos, no dia do surgimento, não fora nada comparado ao que se instalara há um ano. No passado houve lutas, sim. Em grande parte por medo do desconhecido, por divergências religiosas e disputas por terras à sombra da muralha, consideradas melhores.
Mas isso foi antes da porta. Desde sempre, a muralha fora lisa como mármore, negra como carvão e intransponível. O mundo acostumara-se com isso. Mas do nada, lá estava ela, uma porta com no mínimo cinqüenta metros de altura e vinte de largura. Localizando-se em uma parte da muralha extremamente conhecida, onde anualmente pessoas rezavam, choravam e imploravam por milagres. Em uma parte da muralha onde jamais houvera porta alguma.  E o significado disso era claro como água.
Depois de tanto tempo imaginando, e de tantas tentativas frustradas de atravessá-la, a muralha finalmente se pronunciara. Uma passagem. A responsável pelo início da guerra atual.  
*
Aquele mundo conhecia duas potências, o Clero e a Monarquia. E um mundo erguido sob tais forças, via constantemente certas alianças sendo feitas e desfeitas. Tanto o Gran-Sacerdote quanto o Rei, e falamos aqui em títulos, não em indivíduos específicos, eram a grande Aliança que movia o mundo. Amigos que apertavam as mãos direitas e cruzavam os dedos pelas costas com as esquerdas. Confiava-se desconfiando, e assim a “paz” seguia em frente.
Clero e Monarquia erguiam forças com o intuito de evangelizar o mundo e proteger o rei, respectivamente. Há muito tempo, verdadeiras armas humanas vinham sendo criadas por estas duas potências. Começou com o Clero, quando crises com religiões pagãs e rumores de magias curativas se alastravam por todos os cantos do mundo. Estas outras religiões, batizadas pelo Clero como seitas, ameaçavam o poder do Gran-Sacerdote, à medida que o número de seguidores aumentava.
Para exterminar esta onda profanadora, o Gran-Sacerdote da época solicitou soldados ao Rei, para que decapitassem, enforcassem e queimassem qualquer um que demonstrasse sinais de heresia. E pensando em um controle à longo prazo, criou o Chamado - um recrutamento de meninos com menos de dez anos para dedicar sua vida aos propósitos da igreja. Estes garotos eram educados e ensinados nas mais diversas artes que os livros podiam proporcionar, assim como qualquer arte que os melhores mestres guerreiros poderiam forjar. Com o tempo, o Gran-Sacerdote tinha em seu poder umas das forças mais letais do mundo.  
Décadas mais tarde, durante um torneio, o rei vigente na época sentiu-se seriamente ameaçado ao presenciar as habilidades dos recém proclamados Guerreiros da Paz. Por esse motivo resolveu cobrar a dívida que a igreja tinha com o reino, quando solicitou os soldados que livraram a terra dos hereges. O que ele queria era o conhecimento para forjar guerreiros como aqueles, mas sabia que o Gran-Sacerdote não entregaria seu trunfo. Então pediu cinco Guerreiros da Paz, à sua escolha, para que fizessem parte de sua guarda. E assim foi feito.
Os cinco Guerreiros da Paz levados pelo rei foram os fundadores do atual Exército Real. Mais tarde, em uma das disputas travadas pelas duas potências, provaram-se extremamente leais ao rei, lutando com antigos parceiros aparentemente não fazendo diferença entre eles e qualquer um com quem tivessem de travar batalha. A partir desse dia também passaram a ser conhecidos como Os Corações Leais. Uma força tão letal quanto àquela que lhes deu origem.  
Naquele tempo não se imaginava que as duas potências entrariam em um conflito definitivo, muito menos que o objetivo desse conflito seria decidir quem teria o direito, ou não, de atravessar uma porta.
*
A marcha para a muralha durara quinze dias, com três paradas por dia. Mas para alguém com a determinação de Sebastian, e que como ele, esperara por essa oportunidade perfeita a mais tempo do que gostaria de admitir, não era uma jornada cansativa. A cada metro que avançava mais perto a muralha ficava.
Em sua marcha, Sebastian aliara-se aos Rebeldes. Nas comitivas rebeldes o sistema hierárquico funcionava da seguinte forma; quem matasse alguém de patente alta, sendo do Exército Real ou dos Guerreiros da Paz, e pudesse provar tal feito, recebia uma patente compatível com a do homem que havia matado. O capitão, por exemplo, matara o general Io, o todo poderoso responsável pela guarda da bastilha, num levante vitorioso que levara à soltura de cinqüenta companheiros condenados à morte. Bateram em retirada muito antes que o Exército Real chegasse, e desde então eram o inimigo número um do estado, e de Deus.
Sebastian não matara ninguém importante, por isso ingressara sem pretensões no grupo. Mas com o tempo, ao verem o que ele se tornava quando brandia sua espada, ganhara o respeito dos companheiros e o direito a lugares de honra durante os saques. Como ficar ao lado dos companheiros de patente mais alta no último saque feito no posto Sul da Igreja. Tais postos eram de uso exclusivo dos Guerreiros da Paz, e geralmente estavam entupidos com os melhores equipamentos.
Os rebeldes viviam de saques, e o ódio que sustentavam pela igreja e pelo rei eram seus lemas principais. Não queriam se submeter. Viviam como desejavam e iam para onde queriam ir. Além de apreciarem uma boa luta. Por isso era fundamental que eles fossem peça importante nas mudanças que o mundo vivia
O clero reclamara a entrada para o outro lado da muralha como sua, tomando posse do que estivesse além dela. Afinal, a muralha fora construída por Deus, e só a igreja devia ter o poder sobre seus mistérios. Mas o rei também reclamara seu direito à passagem e à tudo o que estivesse do outro lado. Afinal, a muralha era divina, e o rei era o homem escolhido por Deus para guiar o povo e reinar sobre eles.
E mesmo os rebeldes, que não hasteavam bandeiras, sabiam que além daquela parede colossal teria de haver algo de poderoso. Portanto nem a igreja e nem o rei deveriam por suas mãos cobertas de anéis sobre ele.  E assim a marcha para a muralha iniciara.
*
Sebastian e o restante dos rebeldes, depois de erguerem acampamento na primeira noite de marcha, se reuniram para discutir os cenários que se estabeleciam. Falaram sobre as alianças necessárias que o Clero e a Monarquia precisariam fazer para arrebanhar milhares de homens para lutar por eles, pois tanto os Guerreiros da Paz quanto os Corações Leais eram valiosos demais para serem gastos matando uns aos outros. Eram uma peça importante, e tinham de ser usados na hora certa.
Havia dois grandes e famosos grupos de mercenários, que cobravam caro justamente por terem bocas demais para alimentar. Os Crânios e os Errantes. As promessas do Clero, assim como uma boa quantia de entrada, atraíram os Crânios para o seu lado. E o simples fato dos Crânios fecharem negócio com o Gran-Sacerdote, foi questão decisiva na aliança feita entre o Rei e os Errantes. 
E assim novos grupos seguiram suas preferências, sucessivamente. Pois a muralha era uma questão mundial e todos queriam atravessar.
Seguindo os Crânios e consequentemente a igreja, vieram os Filhos do sol, selvagens de pele vermelha, do extremo ocidente. Os Peregrinos, com suas comitivas infinitas de carroças enfeitadas de guirlandas, e os caçadores, homens simples, tementes a Deus, que passavam mais tempo na mata caçando do que na presença de qualquer outro ser humano. Não eram guerreiros de batalha, mas guerreavam a cada dia por abrigo, comida e umas poucas moedas para sustentar a família. Eram durões o bastante. Ou ao menos o eram para morrer na linha de fronte.
Do outro lado, seguindo os Errantes e o Rei, estavam os Canos Longos, um povo costeiro, pescador, comumente vistos usando suas botas de canos longos para pescar nos extensos costões rochosos, usando arpões e lanças. Seus frutos do mar eram muito apreciados na corte. Logo depois vieram os Herdeiros, um grupo de mercenários menor que se separara dos Crânios décadas atrás, e clamavam suas pretensões de serem mais valorosos e mais poderosos mercenários que seu grupo de origem. E os Sanguessugas, gente da pior espécie. Muitos inclusive acreditavam que não eram gente, e sim um tipo de povo primitivo, que não tinham um pingo de civilização na mente. Eram brutais, frios e, o mais importante, assassinos cruéis. Batizaram-se de Sanguessugas por se darem o trabalho de desmembrarem os inimigos caídos até a última grama, manchando todo o campo com sangue. Não era uma estratégia muito boa, perdiam muito tempo e podiam ser mortos facilmente no meio de seu ato sanguinário. Mas eram um povo estranho, e metiam medo.
Sebastian poderia estar em qualquer um desses grupos, mas lhe pareceu mais certo permanecer com o grupo de pessoas que fariam tudo para conseguir seus propósitos, menos fazer alianças. Não queria ter nada haver com ninguém. Não queria nada de valor que pudesse estar do outro lado da muralha, não queria ter terras, nem milagres. Queria saber a verdade. Queria saber sobre Fúria. Queria saber por que sua família tinha morrido.
E do outro lado era o único lugar que, ele tinha certeza, encontraria essas respostas.  
*
De onde estavam, no alto de uma colina, a uns três quilômetros da muralha, Sebastian e os rebeldes tinham uma boa visão dos acontecimentos. A gigantesca muralha, de frente a eles, ficava ao sul, enquanto que as forças do Rei vinham do oeste, e as do Gran-Sacerdote, do leste. Por trás e ao redor deles, cadeias de altas colinas formavam um corredor estreito para o campo de batalha. Algumas das colinas possuíam formações rochosas, um esconderijo perfeito para a confecção de uma emboscada. Mas o capitão já enviara batedores para estes locais, que logo voltaram e garantiram que a área estava limpa. Um erro imperdoável das duas potências e seus seguidores.
 A cidade construída na base da muralha estava vazia. Ninguém queria estar por perto quando o caminho das marchas colidisse. Estavam certos. A visão de Sebastian e do resto dos Rebeldes era um verdadeiro mar de pessoas colidindo. Os sons dos gritos de raiva e de dor somavam-se com os sons das lâminas das espadas colidindo e com o relinchar dos cavalos. Ainda não havia muitos mortos, e os gritos do calor da batalha ainda reverberava com força, o que fez Sebastian calcular que ainda não se passara muitas horas desde que tudo começou. E como previsto, a luta pertencia aos mercenários naquele primeiro momento, assim como todos os outros grupos menores de civis. Os sete mil Guerreiros da Paz enfileiravam-se em suas montarias atrás de seus mercenários, observando e aguardando. O mesmo se dava com os cinco mil Corações Leais. 
Sebastian estava inquieto. A porta imensa, incrustada na muralha, era facilmente visualizada por trás da maior concentração de homens lutando. Lá estava sua passagem. A porta permanecia fechada desde que surgira, mas não importava. Sebastian sabia que atravessaria. Apenas tinha de chegar lá. Sua parceria com os Rebeldes seria crucial.
Não haviam se deparado com nenhuma sentinela no caminho, e ainda não tinham sido vistos por nenhum dos Guerreiros e dos Corações. Uma fraqueza imprevista, e que facilitaria tudo. Aqueles homens, tão bem treinados pelo clero e pela monarquia, pareciam padecer de um excesso de confiança que sempre era mortal no campo de batalha.  
Mais uma hora se passou desde que os rebeldes chegaram, e ainda não tinham sido vistos. A chacina lá embaixo continuava a evoluir. Sebastian avaliou e impressionou-se com o nível de luta dos mercenários. Crânios e Errantes eram facilmente distinguíveis, pois os Crânios usavam ossos em suas vestimentas. Ambos os grupos valiam o dinheiro que cobravam. As ações de ataque e defesa eram perfeitas.
Do lado leste, Os Filhos do Sol posicionavam-se logo à frente dos Guerreiros da Paz, atirando com suas setas envenenadas a longo alcance. Os Peregrinos não tinham ordem e estilos de luta bem definidos, mas se utilizavam de golpes baixos e truques de ilusão – lançando gases que dispersavam as formações inimigas, e eram tão lacrimejantes e ardentes que cegavam o alvo em segundos, tornando-os fáceis de apunhalar. Os caçadores eram também exímios nos arcos, mas se aproveitavam mais de seus machados.
Mais para o lado oeste, os Canos longos espetavam um inimigo após o outro com suas lanças e arpões, com tanta força e precisão que muitas vezes três homens eram empalados ao mesmo tempo. Os Herdeiros, cujos golpes de massa e espada quase sempre destruíam os escudos, se destacavam por sua força. Já os Sanguessugas... Sebastian não se lembrava de presenciar atos tão inumanos em batalha. Os monstros se banhavam em sangue por puro prazer, conseguiam arrancar corações só de enfiar as mãos garganta abaixo dos oponentes, e riam enquanto enforcavam outros com as próprias tripas.
Os Guerreiros da Paz avançaram. Os trotes de seus cavalos e o som de suas trombetas fizeram até mesmo Sebastian se arrepiar. Os Corações Leais fizeram o mesmo. A hora estava chegando.
Quando as famosas forças armadas do Rei e do Clero colidiram, a impressão que passava era a de que a batalha acontecia em um ritmo acelerado. Nada se comparava à agilidade e à pureza dos movimentos dos Guerreiros e dos Corações. Ambos possuíam montarias, mas isso não impedia que saltassem para a montaria do inimigo - no que Sebastian só conseguiu associar a movimentos circenses - matassem o oponente, e voltassem “voando” para sua montaria original. Ambos usavam uma espécie de arpão menor, ou como Sebastian chamava cabo-arpão, escondido por debaixo das vestes nos braços, bastando um único movimento rápido na direção do inimigo para fazer este cabo metálico e pontudo atravessar cabeças e pescoços com facilidade. Mal se acompanhava os golpes feitos com as espadas.
Meia hora mais tarde o capitão dos Rebeldes anunciara que a vez deles chegara. Sebastian mal podia conter sua euforia. Os Rebeldes iniciaram a descida pela colina em direção ao campo de batalha, berrando gritos de guerra incompreensíveis, com seus rostos transformados em carrancas monstruosas. Não era uma força tão grande, mas duzentos homens Rebeldes eram algo a se temer, principalmente com a vantagem do elemento surpresa ao seu lado. Foi então que o inesperado aconteceu.
Por detrás das colinas e suas formações rochosas, onde mais cedo os batedores rebeldes fizeram sua varredura, uma nova frota irrompera. Ou melhor, não uma nova frota, mas cavaleiros de Guerreiros da Paz e de Corações Leais. De repente os Rebeldes se viram cercados pelas duas potências, e não apenas pelos membros comuns de sua armada, mas pelos mais credenciados generais de cada uma. Reconheciam-se eles pelas medalhas com a pomba dourada no peito dos Guerreiros, e o pentagrama no dos Corações. A estrela de cinco pontas fazia alusão aos cinco membros do Exército Real entregues ao rei pelo Gran-Sacerdote. Os cinco primeiros, cujos cinco descendentes ainda faziam parte da armada.
“Os desgraçados vieram do nada!”, Sebastian não podia acreditar. “Separaram frações menores de suas forças e se uniram para nos emboscar!” O elemento surpresa tinha sido perdido com essa nova virada. Depois de tudo, estavam à mercê dos mortais cabos metálicos cuspidos por ambas as potências. Homens e mais homens Rebeldes tiveram as jugulares atravessadas em meio à cavalgada, e mais homens morriam quando Guerreiros saltavam de suas montarias e aterrissavam em cima deles, torcendo seus pescoços. Sebastian vira um dos Corações repetir os movimentos de saltos dos Guerreiros em sua direção. Sem parar a cavalgada desembainhou Fúria e cortou o desgraçado ao meio com um só golpe.
Fúria era capaz disso. Não mais se surpreendia com o poder de destruição da espada desde quando quase morrera ao desembainhá-la pela primeira vez. A morte brutal do Coração Leal chamou a atenção dos outros, que convergiram para Sebastian. Inclusive os cincos primeiros, com a insígnia do pentagrama em tamanho maior no peito, e capas brancas por sobre as armaduras. A visão de um deles, o mais velho, com uma barba branca e pontuda, liderando os outros quatro, trouxe de volta um sentimento em Sebastian que descera como um raio e quase o fizera cair do cavalo.
Sebastian não lembrava os rostos deles, só lembrava que eram cinco.
“É a espada!”, gritara o velho de barba pontuda. “Peguem a espada!”
Sebastian entendera, e dezesseis anos depois, lembrara. Puxara as rédeas do cavalo, forçando-o a diminuir a velocidade, e guiara-o em um giro de cento e oitenta graus. Confrontaria os cinco de frente.
Dois saltaram para ele como rãs, pernas flexionadas e braços prontos para liberarem os cabos-arpões. Os desgraçados pulavam alto, creditava isso a eles. O que saltara primeiro logo liberou seu cabo-arpão. Sebastian sentiu que este vinha direto para o meio de seus olhos antes de desviá-lo com Fúria. O primeiro dos assassinos de sua família a morrer, morrera cortado longitudinalmente, da base do pescoço à virilha. Fúria lhe garantia movimentos tão rápidos que quem via de fora mal podia entender o que se passava.
O segundo assassino de sua família recebera um corte que lhe arrancara o braço direito fora, antes que atirasse qualquer coisa. Deixaria aquele pra morrer depois. Mal pensara nisso e sentira outro cabo-arpão se aproximando. Desviara dele curvando-se para frente de seu cavalo. A decisão de abandonar a montaria veio rápida, e antes que percebesse imitara o mesmo salto feito pelos Corações e Guerreiros, aterrissando no terceiro assassino. Enfiara Fúria bem no meio do corpo do desgraçado, sentindo o sangue quente banhar-lhe a face. Virou-se rapidamente para trás desviando-se de outro cabo-arpão, enquanto deixava o quarto assassino que voava para ele duas pernas mais baixo. Aquele também morreria mais tarde.
O velho sobrara. Não pulara sobre ele como fizeram os outros, a raposa velha. Sebastian tomara as rédeas do cavalo e o direcionara para o último assassino. O velho, sem querer dar chances de ser dilacerado como os companheiros, impulsionou os dois braços e atirou dois cabos-arpões. Sebastian desviou um deles com Fúria e agarrou o outro no ar. Com um puxão derrubou o velho desgraçado do cavalo, que rolara por sobre a campina gritando.
Sebastian desmontara e fora direto para o velho. Estavam muito próximos da batalha em si, mas não chamaram a atenção de ninguém. O banho de sangue continuava inabalado. Passava do meio da tarde, e o clima, antes ameno passou a esfriar. O ar cheirava a morte.
A velha raposa levantou-se com mais desenvoltura do que Sebastian teria adivinhado. Não era à toa que o desgraçado era um dos Cinco.
“Sei exatamente quem você é, Sebastian”, disse o velho com um sorriso ferino. “E não é pela espada, não. Parece que estou diante de seu pai mais uma vez.”
“Não fale do meu pai.”
“Porque não falaria? Um dos meus melhores pupilos! Muito talentoso.”, vendo o rosto confuso de Sebastian, continuou. “É, rapaz. Seu pai era um dos Corações Leais, não sabia? O desgraçado... Eu devia saber que ele não contaria isso à família. Se tivesse contado talvez você não estivesse ao lado destes rebeldes imundos”
Sebastian preparou um golpe de duas mãos com Fúria, o velho não se moveu para se proteger. Apenas ergueu a mão como se pedisse permissão para falar.
“Não posso contra essa arma magnífica. O vi usar contra meus companheiros, e vi seu pai usá-la também. Sei do que ela é capaz. Não seria uma luta muito honrosa, é claro. Tenho certeza que podemos torná-la mais interessante...”
Sebastian fez Fúria transpassar o velho. Não tinha interesse em nada que ele tivesse para falar. Só tinha interesse em seus olhos, e em como queria vê-los daquela forma, arregalados, assustados, deixando a alma escapar. Então disse, cravando a espada mais fundo.
“É bom que não tenha família, seu desgraçado. Porque se tiver, trancarei todos eles dentro de casa e queimarei até o último pedaço que restar!”
Não faria realmente isso, mas ver a raposa velha morrer com terror nos olhos, fizera a mentira ser tão doce como o mel. Não tinha planejado encontrar os cinco assassinos, mas sentia que estava mais leve agora que essa parte de sua vida se resolvera. Ou melhor, não totalmente. Caminhou mais alguns metros para matar o segundo assassino, que agonizava sem um dos braços, e o quarto, que se arrastava sem as duas pernas. 
*
Seu problema agora era com a muralha. A batalha ainda se desenrolava, e ele caminhava ileso por entre ela, visando a porta. Alguns eventualmente tentavam pará-lo, mas morriam tão facilmente, que ninguém mais resolveu tentar. Ao finalmente se encontrar diante dela, percebeu uma falha à altura do peito. Não uma falha qualquer. Era reta, lisa e profunda.
Como se tivesse sabido disso a vida toda, desembainhou Fúria e a encaixou na falha.
Uma luz branca explodiu e se alastrou pelas colinas, cegando a todos por um segundo. E reinou o silêncio.
*
Ainda segurava Fúria enfiada na porta quando virou a cabeça para trás. Estava só. Não havia mercenários, ou sanguessugas, muito menos Guerreiros da Paz ou Corações Leais. A paisagem era diferente, havia mais verde, cheirava melhor e as cores eram mais vibrantes. Não muito longe, vira um homem se aproximar devagar.
Seu pai.
Sabia que era ele, aqueles olhos claros e bondosos não poderiam ter outro dono. O simples semblante do homem o fez chorar. Tinha atravessado.
“Meu menino”, disse o homem sério, como sempre fizera, e o abraçara.
Seu pai tinha a mesma aparência da época em que morrera, e os dois agora não distavam muito na idade. Poderiam passar por irmãos facilmente.
“Como isso é possível? Como o senhor está aqui?”
“Aqui não existe possível e impossível, menino. Aqui, se as coisas têm de ser, elas são.”
“Estou morto, então? Aqui é o paraíso do qual os sacerdotes tanto falam?”
O homem sorrira.
“Tudo o que se fala lá fora não chega nem perto de tudo o que há aqui. A Verdade é como nós a chamamos. E ela é tão bonita. Você não entenderia, ninguém entenderia. Mas um dia irão.”
“Tenho tantas perguntas... Preciso saber...”, disse Sebastian afoito.
“Acalme-se, acalme-se meu garoto. Você já sabe de tudo, não sabe? Apenas este lugar é feito de perguntas. E você? Sabe do que é feito?”
Sebastian respondera antes que pudesse pensar.
“De respostas.”
“Exato! Não há nada aqui que seja escondido, também não há mentiras. Como eu disse, a Verdade é tão maior do que tudo o que já se pensou, o que se pensa e o que se pensará sobre ela.”
Sebastian sentia isso. Podia se perguntar tudo! Qualquer coisa! E teria a resposta. Podia lembrar o rosto da mãe agora.
“O senhor atravessou a muralha porque eu fui o escolhido. Eu precisava vir aqui e voltar.”
O pai sorrira novamente. Sebastian continuou.
“O senhor atravessou sem uma porta, sem uma chave. Eles o consideraram digno... A Verdade o aceitou. Deram-lhe Fúria por ser um objeto que qualquer um cobiçaria. Mesmo os que o amavam. Mesmo o seu mestre. O senhor sabia que ia morrer, sabia tudo.”
O pai não sorrira ali, parecia até mais velho agora que Sebastian o observava melhor. Então o pai disse.
“É uma das coisas que acontece quando se sai daqui. Muitas coisas você esquece, porque sua mente não suportaria saber. Mas outras, você lembra. Sempre lembrará. Sua mente escolherá o que será melhor ser lembrado.” 
“Mudanças grandes são esperadas de mim. Se eu soubesse antes...”, disse Sebastian. “Mas não me sinto digno.”
“A negação é natural, até mesmo quando já se sabe tudo. Muitas vidas dependerão de você, Sebastian. O novo mundo precisará de você. Não será fácil, mas nada o é de verdade. Eu precisei passar pelo que passei para que você chegasse aqui. E você precisou passar pelo que passou para sentir o que está sentindo agora.”
Sebastian sabia o que sentia, e sabendo tudo, retirou a espada da muralha. Na lâmina não estava mais escrito Fúria. Estava escrito Remorso
“Quando o senhor recebeu a espada, ela ganhara o nome Determinação”, disse enquanto lágrimas escolhiam de seus olhos. “Sei o que preciso fazer. Preciso construir um novo caminho. Preciso mudar.”
“E o melhor de tudo é que agora você sabe que vai conseguir. Mas quando voltar ao outro lado, tenho certeza que não saberá mais. Esse tipo de saber não existe lá.”
Acessou a informação para saber de sua mãe, se ela estaria deste lado também, e compreendeu mais uma coisa. Seu pai não estava mais lá. Seu pai agora era sua mãe, e sorria como toda mãe que olha o filho sorri.
“A Verdade é muito maior.”, disse Sebastian, e virou-se novamente para a muralha. Antes de atravessá-la, antes de deixar para trás o saber absoluto, soube, mesmo antes de ver, que o nome da espada mudara novamente. Ela não se chamava mais Remorso.
Chamava-se Redenção.
Fim



domingo, 22 de setembro de 2013

Desafio #1 Projeto Pena e Nanquim - Terror



RUBRO


Eu fui a primeira da família a não acreditar na profecia. Antes de tudo acontecer nenhuma daquelas palavras jamais tinham sido levadas a sério, então não foi uma posição difícil de manter.  Alguém tinha de se agarrar à razão, não é? Pois eu lhe digo uma coisa: A razão é a primeira a morrer quando tudo a sua volta desmorona. Quando você menos espera não existe mais aperto de mão, abraço ou cafuné. Se você encontra alguém, não o olha mais nos olhos... As coisas ficaram dessa forma. Se quiser viver é melhor aprender a caminhar sozinho. Acostume-se com o escuro, pois ele está em todo lugar agora.
Melhor parar de escrever... O som do giz na parede faz barulho demais, e ela está vindo.
É mais fácil ouvir as coisas agora, tanto pra mim quanto pra elas. Aqui é tão silencioso. Posso ouvi-la se aproximando no andar de baixo.
Eu odeio giz.
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Os sons no andar de baixo sumiram. Não sei se a coisa foi embora, ou se está dormindo, ou se gosta de me fazer pensar em tudo isso. Mas tenho de ficar trancada nesse sótão, por via das dúvidas.
Tenho tanta fome.
Encontrei estes pedaços de giz no canto, dentro de uma caixinha colorida. Parece ter pertencido a uma garotinha. Não havia ninguém na casa quando cheguei. Talvez a família que vive aqui já esteja morta. Não me surpreenderia, depois de tantas outras mortes que vi antes de me esconder aqui. A única coisa que me distrai é escrever, por isso pretendo continuar até quando conseguir... E for sensato.
Como disse, não acreditava na profecia, mas isto foi antes de ver tudo o que ela descrevia acontecer. Entretanto muita coisa que aconteceu depois não fazia parte dela. Não que isso importe. Basta dizer que tudo começou quando o papa em Roma renunciou. A profecia falava disso. Depois outro assumiu, e esse outro desapareceu dias depois. Ninguém achou o cara.  Outra coisa...
________________________________ //___________________________________ 
Algo lá em baixo deve ter caído. Achei que parte da casa tinha desmoronado... Uma hora já se passou e ainda tremo. É estranho isso... Quando pensei que estava tudo terminado, que a coisa tinha me encontrado e que era o fim, me peguei incrivelmente calma. Havia aceitado o que quer que tivesse sido reservado pra mim.
Mas continuei viva... E o medo que tomou conta de mim depois só de pensar no que poderia ter me acontecido...  Acho que nunca senti tanto medo assim na vida.
Bom, voltando...
Depois um meteorito atingiu a Rússia. O estrago físico não foi grande, mas todo mundo entrou em pânico. Dava pra sentir o cheiro no ar... Não sei explicar direito, mas tudo cheirava estranho. Era mais como uma energia, na verdade, uma energia vingativa. Sim, quando penso naqueles dias lembro-me de um sentimento de vingança...
Mas não éramos nós que estávamos nos vingando.
Todos os que eram mais próximos a mim estavam incontroláveis... Como se quisessem escapar. Só que tudo ficava pior a cada dia... Não havia lugar pra se fugir. Estavam se afastando de mim. Todo mundo cada vez mais distante.
Rumores de algo pior se espalhavam... Havia vídeos e fotos em todo site que se visitava. Não se falava em outra coisa nas redes sociais. Alguns falavam até de gente morta se levantando...
Achei que fosse loucura... O mundo parecia distorcido. Mas então vovó Mel não resistiu a tudo aquilo e morreu... Duas horas depois ela estava de pé, mordendo minha sobrinha, bisneta dela, de 10 anos. Não conseguimos fazê-la parar de atacar... Morávamos no sétimo andar. Eu a joguei.
Lá embaixo ela ainda se mexia.     
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A coisa sabe que estou aqui. Tenho certeza agora. Ela se arrasta lá em baixo, sussurra.
Deseja.
Tenho vontade de acabar logo com isso e sair daqui. NÃO AGUENTO MAIS A FOME!
Mas não posso... Não consigo. Se o que estivesse lá em baixo fosse a merda de um morto-vivo, eu poderia sair. Quando é apenas um, ou até cinco, não tem tanto problema. Esmagaria a droga da cabeça deles e estaria acabado.
Mas eu não sei o que está lá em baixo. Ninguém jamais soube. Sobre essa coisa a profecia nunca disse nada. O que eu sei é que o mundo acabou de vez depois que elas chegaram. Elas nos caçaram e nos pegaram, e de um em um, o mundo acabou. Foi rápido. E provavelmente, minha vez chegou.
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Por algum motivo que não sei explicar, estas coisas não matam aleatoriamente. Elas escolhem alguém e o perseguem até o inferno se for necessário. Já faz umas semanas que estou sendo caçada. Esta casa foi o melhor lugar que pude encontrar.
Tive apenas um dia de calma e silêncio. Até que vi, pela janela do quarto em que estava, as pegadas na neve vindo em direção à casa... Desci até a sala... A porta da frente estava aberta, e o rastro de neve se arrastava até a cozinha nos fundos.
Havia sangue na neve.
Foi quando ouvi a coisa pela primeira vez. Havia rumores que as vítimas podiam ouvir o monstro falar. Nunca foi uma certeza... Ninguém que tivesse escutado estava vivo pra confirmar. Mas eu ouvi...
Corri na mesma hora. E senti o desejo dela por mim aumentar a cada passo que eu dava. Tentei a porta da frente, mas esta bateu e emperrou assim que a alcancei. Não podia ir pela porta dos fundos.
Ouvi as panelas penduradas acima do balcão despencarem.
Estava decididamente na cozinha.
Subi desesperada a escada até o segundo andar, e depois subi para cá. Resolvi que quanto mais distante eu estivesse maiores seriam minhas chances.
Estou aqui a 3 dias.
Percebi que já estava morta. A coisa estava lá por mim, e tinha habilidades estranhas... Fechou a porta da sala sem nem mesmo tocá-la, me trancou aqui. Se estou viva até agora é porque a coisa assim quer, e eu também não tenho coragem de mudar essa situação...
E sobre a voz... É terrível. Acho que nunca ouvi nada pior. Lembra o som de metais em atrito, mas é diferente... É como se o som não fosse propagado pelo ar. Parece que eu escuto a voz diretamente de outro lugar. Um som esganiçado, frio... Cortante. E desde que comecei a ouvi-la, escuto sempre a mesma coisa, de novo e de novo. Ela sempre diz:
“Eu quero”
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Devo ter dormido umas cinco horas. Já é noite. Foi bom, pelo menos não senti a fome queimar meu estômago nesse tempo. Comer é só o que eu penso agora, e quase não me importo mais com a coisa lá fora. Preciso comer. Mas para isso preciso deixar o sótão...
É isso o que ela quer.
Este é o último pedaço de giz que sobrou. Percebo agora que estava perdurando minha estadia no sótão enquanto ainda houvesse giz pra escrever. E agora que vai acabar...
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A coisa gritou lá embaixo. Um grito de raiva, acho. Deve estar impaciente. E depois do primeiro grito indefinível, mais um...
“Eu quero”
Tive vontade de gritar de volta pra ela vir buscar o que ela quer de uma vez. Coisa maldita.
O que ela quer é que eu saia. Quer me ver e quer que eu dê o primeiro passo. Não sei como sei disso, mas é a verdade.
Vou acabar logo com isso. Estou cansada desse medo, dessa solidão, da incerteza. E não quero mais sentir tanta fome. Preciso descobrir e encarar a razão do fim do mundo. Quem sabe eu possa entender um pouco mais de tudo isso e morrer mais informada... Se é que tem alguma vantagem nisso.  
Algo estranho começou a acontecer. Mais estranho ainda. Algo novo. Uma nova parte do pesadelo está começando.
Minha...
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Samanta finalmente escreveu a última frase no rodapé, próximo à porta. Ironicamente, ou liricamente, quem pode saber as razões das coisas acontecerem da forma que acontecem, o ponto final foi escrito com a última grama do último pedaço de giz que havia na caixa. A hora tinha chegado. Ouvia o coração bater loucamente espremido no peito, como se ele soubesse que aquela seria a última vez que poderia cumprir com seu dever.
Caminhando lentamente em direção a porta, pensou que o que estava sentindo devia ser a mesma sensação que as pessoas que caminharam em direção a forca, para dentro de uma câmara de gás, ou pela prancha de um navio, sentiram.
Estava indo morrer, e sabia disso.
Perguntou-se pela milionésima vez o motivo de tudo aquilo ter acontecido. A hora da espécie humana tinha chegado? Era isso? Simples assim? Castigo divino? Há poucas semanas atrás seus sonhos estavam no auge. Ainda havia tanta coisa que gostaria de fazer, de ser... Tanto a se tentar. Tinha tanta vontade de viver. E tudo seria desperdiçado.
Estava parada diante da porta, com a testa colada na madeira, sentindo o ar quente que exalava embaçar a peça lustrosa e esperando que o corpo reagisse à decisão que o cérebro já tinha tomado.  
“Abra a porta”, ela pensou.
Finalmente moveu a trava que atravessava a porta de um lado a outro. Uma viga de madeira pesada, que tinha sido feita justamente para o que servira - manter o que quer que estivesse do outro lado, do outro lado. Foi quando reparou nas feridas que se abriram nos dedos que usou pra escrever seus últimos dias. Odiava giz, mas não teve raiva do que sua aspereza fez com ela. Parecia natural que seus últimos dias tivessem sido escritos a custa de sangue.
“Eu vou morrer”, pensou.
O último recurso de tranca do sótão era a bendita chave, do tamanho de uma mão, e cheia de pontas retorcidas e afiadas. Segurar aquela chave dava a sensação de ter a pele perfurada sempre. Girou-a duas vezes. O segundo giro destravou a porta, que estalou pra frente fazendo um barulho infernal, digno de um infarto.
Girou o trinco com dificuldade. Cada centímetro de seu corpo tremia, como se implorasse que não fizesse o que estava prestes a fazer. Então girou mais alguns graus e a porta se abriu.
E ao abrir é claro que a porta rangeu.
A escada estreita e comprida despencava metros até o corredor escuro do segundo andar. Era a sua prancha. E todo o resto era um vasto oceano de um azul sombrio e infinito. Desceu, então, os primeiros degraus.
Teria continuado a descida se não fosse pelo ranger da porta logo atrás. Virou-se de costas, e o que viu, encarando-a de volta com olhos brilhantes rubros de sangue, foi a coisa mais assustadora que já presenciara.
“Eu quero!”
Samanta gritou. Mas o fez com tanto pavor que não foi nem mesmo capaz de ouvir o próprio grito. Disparou escada abaixo o mais rápido que conseguiu, tropeçando e caindo nos últimos degraus. Percebeu que não sentia as pernas, tremiam tanto que não havia sensibilidade alguma. Arrastando-se pelo corredor escuro arriscou mais uma olhada para cima. O que quer que fosse aquilo tinha uma forma humanóide e esguia. Não muito alta e nem um pouco ereta. Sua forma era torta, como se estivesse quebrada... Torcida.
“Como...?”, pensou em desespero. “Como veio do sótão? Acabei de sair...!”
Os olhos vermelhos brilhavam iluminados, como pequenas luzes de natal. E não perdiam Samanta de vista. E também havia aquela pele... Cada parte dela era avermelhada. Um tom causado por queimaduras, assaduras... Em alguns pontos despelava, e em outros parecia haver escamas.
 Do jeito torto de que era constituída a coisa avançou quatro degraus de uma só vez. Os braços retorcidos se equilibrando nas paredes.
Samanta sentiu suas pernas voltarem e levantou-se. Uma dor excruciante a torturou no pé direito. Devia tê-lo torcido na queda. Atravessou o resto do corredor ao mesmo tempo em que a coisa terminara de descer a escada. Descia agora a escadaria principal, que levava a sala de estar.
“Eu quero a sua força”
Sua energia fora drenada em segundos, fazendo-a despencar rolando o resto do caminho.
“Eu quero os seus sonhos.”
“Eu quero trocar! Quero ser!”
Samanta não era quase mais nada. Tentava fugir mesmo não tendo forças para respirar. Arrastava seu corpo exaurido e pesado enquanto a coisa se aproximava cada vez mais. Foi então que percebeu o quanto estava oca, e o quanto doía estar assim. Tudo o que algum dia sentira, todas as suas melhores lembranças a tinham abandonado. E o conhecimento de tudo o que quisera ser e tudo o que sempre desejara conquistar lhe fora roubado no instante em que a coisa expressara seu desejo.
- Olá! Consegue me ouvir? RESPONDA!
Samanta ouviu essa voz. Uma voz humana! E estava vindo da porta de entrada. “Alguém ouviu o que está acontecendo! Alguém veio me ajudar!”
Tentou responder. Tentou dizer qualquer coisa, mas não tinha voz pra usar... Só conseguiu chorar em silêncio e implorar que a pessoa entrasse. Então lembrou que a coisa tinha trancado aquela porta dias atrás. “Por favor... socorro! Por favor!”
A voz da criatura foi horrível de ouvir. Insuportável.
“QUERO SER!”
Samanta viu os olhos vermelhos a encararem, tomados de fúria e desejo, na base da escadaria. E então, com uma velocidade inimaginável, e ainda inteiramente torta, a coisa avançou com os braços estendidos para ela.
Gritou.
E continuou gritando enquanto sentia sua boca sendo aberta contra sua vontade. Os dentes superiores e inferiores forçados em direções opostas pelas mãos do monstro...
Era pior vê-la de perto. Pior.
***
Havia um homem triste no sótão, usando branco. O sol brilhava lá fora enquanto ele terminava sua leitura. Lera o que tinha no chão e nas paredes. Identificara a última frase escrita tortamente no rodapé e sentiu-se afundar na tristeza ainda mais.

“Minha pele está ficando vermelha.”


FIM

Desafio #3 Projeto Pena e Nanquim - Fábula

O trabalho de Ratie

- Antonio Caetano –

Bem no fundo, lá embaixo, nos esgotos da cidade grande, onde as sombras eram as mais assombrosas, e onde os passos nunca eram ouvidos, Ratie, o rato, estava em sua toca, chorando. Triste por causa da bronca que o tio lhe dera.
- Ratie, seu ratinho estúpido! Não suba para fora do esgoto sozinho! E não fale com outros animais que não sejam seus irmãos ratos!
Ratie ajudara uma corujinha perdida no esgoto a achar a saída.
- Agora aquela corujinha vai crescer e vai caçar nossos irmãos à noite! Justo quando os humanos estão dormindo e ficamos mais seguros! Você só atrapalha!
Por isso Ratie ficou bem quieto no seu buraco. Não pensara no perigo que correra na superfície ou no mal que tinha feito a seus irmãos. Ele só queria ajudar a corujinha perdida. Ser um bom animal!
Um belo dia, ou uma bela noite, não se sabia, afinal nos esgotos parece ser sempre noite, Ratie resolveu ir embora. Mas não podia ir sozinho na superfície! Iria, então, para mais fundo, para um lugar onde nenhum outro rato tinha ido.
O Poço Profundo.
Perto do poço ouviu um barulho. Mais rápido que um piscar de olhos Ratie encontrou uma fenda para se esconder e esperou lá, em silêncio. Viu então se aproximar uma borboleta. Voando desengonçada, subindo e descendo, como as borboletas fazem. Ratie se perguntou o que uma borboleta fazia tão fundo no esgoto. Então ela voou para dentro do Poço Profundo.
Bom, pensou Ratie, se uma borboleta que é tão pequenininha e frágil pode ir ao poço, então eu também posso. O Poço Profundo era um cano feio e enferrujado, que descia por um buraco escuro e assustador.
Ratie respirou fundo e se jogou.
Caiu por tanto tempo que até pensou porque continuava caindo. Seu coraçãozinho batia mais acelerado que o normal. Até que viu lá no fundo uma luz muito forte e caiu num lago de água cristalina.
Quando nadou para a superfície ficou de boca aberta. Estava em uma floresta, e a luz do sol iluminava cada árvore e pedra do lugar.
Ratie achava que estava fundo nas profundezas da terra, mas acabara chegando a um belo lugar cheio de luz e verde.
 - Ei! Quem é você?
Quem falara fora uma criatura linda, alta, pelos brancos que brilhavam como uma estrela. Um cavalo com um chifre no centro da cabeça.
- Meu nome é Ratie. Acho que estou perdido.
- Deve estar mesmo! Nunca o vi por aqui. Veja o que fez com o nosso lago! Seu pelo o sujou!
Para Ratie a água ainda estava tão limpa quanto poderia estar.
- Como chegou aqui? – o unicórnio perguntou.
- Segui a borboleta pelo poço.
- Você não pertence a este lugar! Todos têm uma função importante! Eu, por exemplo, deixo puro e saudável tudo o que toco com meu chifre! Não há lugar para criaturas como você por aqui! Estes são tempos perigosos, os homens têm aparecido ultimamente.
De novo a rejeição. O Poço Profundo deveria ser o lugar onde não seria mais mal tratado e mal compreendido. Correu, então, para longe.
Logo depois um esquilo, lá do alto de sua árvore, guinchou:
- Quem é você? O que faz aqui?
- Sou Ratie e cheguei pelo poço.
- Mas o que você faz? Eu, por exemplo, planto.
- Eu também posso plantar!
- Nós esquilos já fazemos isso. Acho melhor você voltar, não tem lugar pra você aqui.
Será que ninguém jamais gostaria dele? Decidiu, então, que ia embora da floresta.
Em outra árvore Ratie viu uma coruja. Aquela era uma coruja adulta e se Ratie vacilasse ela o abocanharia de uma só vez! Mas não foi o que ela fez.
- Está perdido?
- Preciso sair da floresta. Não tenho função aqui. Mas não quero voltar aos esgotos!
- Todos têm função, você só precisa descobrir a sua. Isso faz parte da vida na floresta.
- Mas o unicórnio e o esquilo disseram que não tem lugar para mim aqui. – disse Ratie.
- Isso também faz parte da vida na floresta, mas você tem que fazer a sua parte. – disse a coruja e saiu voando.
Foi quando de repente um barulho muito alto ecoou. E todos os animais começaram a correr assustados.
- O que está acontecendo? – perguntou Ratie.
- O homem está na floresta de novo! Está caçando! – gritou um coelho.
Ratie saiu correndo e rapidamente encontrou um lugar para se esconder, debaixo de uma raiz.
- É isso!  - Ratie percebeu.
Ratie sabia viver sem ser percebido. Podia se esconder em cada sombra, cada rachadura. E sabia usar o ambiente onde estava para se esconder. Gritou para chamar os animais da floresta, desesperados com o barulho assustador dos homens.
Ratie explicou que sabia como salvá-los. E foi o que fez! Ajudou o unicórnio a se esconder perto das árvores de casca clara e galhos nus, e a ficar bem quietinho. Sem fugir! Ajudou o esquilo a se esticar nas árvores de casca da mesma cor que ele, bem quietinho e sem fugir! E desse jeito todos os outros animais se esconderam com a ajuda de Ratie.

No dia seguinte todos estavam sãos e salvos e felizes, e Ratie era o herói da floresta. Sentiu-se feliz e aceito como nunca, pois percebera que tinha uma função, que servia pra alguma coisa e que todos são especiais ao seu modo, só que cabe a cada um descobrir por si mesmo o porquê. 

sábado, 21 de setembro de 2013

Desafio #2 Projeto Pena e Nanquim - Romance em três atos.

AS ASAS DE CHARLOTTE                                            

- Antonio Caetano -

Ato I – O dia em que a vi voar

Um
Os pardais Branco-Coroados sobrevoavam os céus do vilarejo de Cottageville, na Carolina do Sul, no início do verão. As crianças se acostumaram a ouvir histórias sobre a exuberante onda de pássaros, capaz de cobrir toda a extensão de céu que as nuvens abrigavam. Eram histórias sobre como a revoada trazia sobre suas asas os poderosos ares da mudança, e que por isso tudo podia acontecer. Inclusive o verão.
Os três meses desta estação eram sem dúvida os mais agradáveis e faziam do vilarejo um dos lugares mais badalados do estado. Os pardais ainda não haviam passado, portanto o verão e a temporada de férias eram bastante aguardados em Cottageville. E é preciso dizer, da mesma forma o era a Srta. Charlotte Eliza Bucknell, que já estava a caminho, acompanhada de sua família, para se hospedar no Whitecrowned.
O Hotel Whitecrowned concentrava grandes riquezas, e as distribuía muito bem, movendo o setor financeiro do vilarejo de tal forma que a população podia sustentar-se pelo tempo que durassem as baixas estações, e ainda tinham o suficiente de sobra para gastar nas atrações que seriam oferecidas pelo hotel no verão seguinte. Mas a fama do Whitecrowned pela alta sociedade da região devia-se principalmente a um ramo completamente extra-oficial, que consolidara o hotel como - utilizando aqui uma classificação arcaica, porém usada até hoje – “potência social”. O ramo de noivados.
O que acontecia era apenas que o hotel provia de uma maneira caprichosa, a reunião de muitas pessoas poderosas e influentes. Políticos e banqueiros, advogados da mais alta estirpe e fazendeiros. No Whitecrowned todos estes magnatas trocavam favores, faziam novas amizades, investimentos e transações que, muitas vezes, mudavam os ventos de todo o país. Aquele era um mundo de poder, apostas, vitórias e derrotas.  E qual melhor maneira de realizar investimentos e troca de favores do que a promessa de um casamento?  Tudo se arranjava facilmente uma vez que no hotel a oportunidade de exibir os filhos e filhas, os futuros esposos e esposas, era uma realidade mais que conveniente.  E é por esta importante realidade que devemos conhecer parte da história da Srta. Charlotte.
Alguns motivos faziam desta jovem solteira uma das pessoas mais aguardadas de Cottageville naquele verão de 1912.  O primeiro deles era a amizade de longa data do senhor seu pai, o Dr. Phillip J. Bucknell, com o famosíssimo proprietário do hotel, o Sr. Frank T. Boone, que convinha de ser seu padrinho.  
O décimo sexto aniversário recém completado de Charlotte era outro motivo que a fazia tão esperada. A jovem agora era uma flor desabrochada para a sociedade, uma nova pintura para se pôr os olhos sobre. É claro que Charlotte sendo filha e afilhada de quem era havia se tornado o partido mais cobiçado da cidade de Colúmbia, e porque não, da Carolina do Sul e redondezas.
Existe um fato interessante que todos devem saber sobre Charlotte Bucknell. A sua nada consensual aparência. Os cabelos castanhos muito revoltos, de cachos que deixavam sua camareira maluca cada vez que lhe era ordenado que os arrumasse, um nariz mais adunco do que sua mãe gostaria, e olhos de um mel escuro, mesmo quando todos da família tinham olhos verdes. Além de ser mais alta que todas as garotas da sua idade.
Há de se perguntar por que motivo deveria ser a aparência da jovem tão importante. Neste caso ela chega a ser quase como uma carta de apresentação. Pois, se as pessoas reparassem, veriam que cada centímetro do corpo de Charlotte demonstrava o quão à parte de tudo o que considerava supérfluo ela se portava, o quão diferente ela gostaria de ser e o quão livre ela gostava de demonstrar que era. Embora, é claro, para todos os outros, tudo era mera aparência. E a não ser que você a conhecesse bem, jamais perceberia a força da linguagem corporal que emanava daquela jovem. Mas, se você a conhecesse, não precisaria reconhecer linguagem corporal nenhuma. Ela não poderia se importar menos com as tradições do hotel, com o fato de ter completado dezesseis anos e de que deveria estar noiva a tempo da primavera.


Dois
O Nash Rambler balançava-se repetidamente enquanto descia pela estrada de terra que levava a Cottageville. Os quatro membros da família Bucknell encontravam-se todos acomodados e confortáveis dentro do luxuoso veículo, enquanto que o segundo veículo os seguia dez metros atrás, levando a bagagem e a ama. Passariam todo o verão no hotel, participando de jantares, bailes, banhos de sol e qualquer outra atividade que estivesse programada. O que significava que, apenas um carro para a bagagem, para os padrões a que estavam acostumados, era realmente muita economia. Assunto este que deixara a Sra. Bucknell reclamando com o marido por quase toda a viagem. A mãe de Charlotte, de primeiro nome Alice, estava tão nervosa com este verão quanto se podia estar. Charlotte até poderia sentir-se penalizada se não tivesse sido o alvo principal de passatempo da mãe durante a viagem.
“O que você tanto escreve Charlotte?”, perguntara a Sra. Bucknell em sua centésima tentativa de um diálogo decente.
Charlotte nas últimas horas armara-se de seu lápis grafite e de seu caderno para escrever. Ela os carregava para onde quer que fosse, nas aulas de costura, piano, pintura e até mesmo nas de equitação. Qualquer tempo que sobrasse, mesmo que fosse um minuto, era tempo suficiente para Charlotte começar a escrever. Seus tutores já haviam reclamado sobre isso com os pais dela, mas os dois, por mais que não quisessem admitir, haviam desistido à longa data de separar a filha daquele caderno.
“Muita coisa”, respondeu Charlotte sem ao menos levantar o olhar.
Alice Bucknell suspirou impaciente.
“Já conversamos sobre suas maneiras de conversação, minha querida! Quantas vezes eu terei de lembrar-lhe? Respostas curtas e rápidas são a pior maneira de se manter uma conversa agradável. Além do mais, eu não perguntei o quanto você escreve, e sim o quê.”
“Não estou a falar com o duque, mamãe. É só a senhora.”, disse Charlotte com a mesma postura.
Peter, o irmão de Charlotte de dez anos, deixara escapar uma risada por entre os lábios. Ele era sempre muito quieto, introspectivo, mas gostava das “estranhezas” da irmã e se divertia com elas. E ela gostava de diverti-lo.
“Sinceramente, Charlotte! Não sei mais o que posso fazer para que você me respeite. Não vejo a Srta. Katherine e a Srta. Lisa comportando-se dessa forma com as mães delas. Deveria se espelhar mais no exemplo das meninas. Mas, ao invés disso, esnoba a amizade delas sem o menor remorso.”   
“Katherine e Lisa – disse os nomes das garotas em tom de chacota – não conseguem passar um quarto de hora sem se olhar nos espelhos da casa pelo menos dúzias de vezes! Se elas forem o melhor tipo de amizade que eu posso conseguir mamãe, então acredito estar muito bem do jeito que estou. Muito obrigada.”
“Vês a insolência com que a nossa filha me trata Phillip?”, exaspera-se Alice.
“Charlotte...”, Phillip chamara a atenção da filha distraidamente. Ele viajava no banco do carona, conversando com Bruce, o motorista da família por duas gerações. Por toda a viagem os dois conversaram sobre a paisagem, o tempo, sobre as raças de ovelhas que cruzavam o caminho na estrada e de como os vilarejos que ficaram para trás tinham suas idiossincrasias bonitas de se reparar. Phillip já devia ter feito este percurso antes incontáveis vezes, mas como ele mesmo dizia, cada vez era única. 
Para Alice, toda a viagem trataria de noivar Charlotte com o melhor partido em que conseguira pensar. Não parava de declamar a ladainha sobre William, sobre os pais de William, sobre os estudos de William e sobre como William vencera competições de hipismo, e de como William era o melhor em tudo o que fazia. Charlotte já detestava o som do nome de William e não poderia imaginar castigo maior do que se casar com ele e ter de conviver com aquele nome pelo resto da vida. Provavelmente até batizar seu primeiro filho com o mesmo nome. Não, se isso acontecesse a ela, conheceria o inferno de Dante.
Já para ela aquela viagem representava o início de uma nova era. Charlotte conseguia sentir em cada centímetro de pele que grandes coisas a esperavam. E não era um casamento. Era algo maior.
É importante dizer que o Sr. e a Sra. Bucknell não eram exatamente como todos os outros membros da alta sociedade que encontrariam em breve. Essa gente sim era de um nível de aristocracia e de mesquinhez que só os de altíssimo nascimento são capazes de ser. Os pais de Charlotte poderiam ser considerados vanguardistas demais para alguns, mas não o suficiente para Charlotte. Afinal havia interesses, tradições e reputações herdadas que precisavam ser zeladas a qualquer custo.
“Não achas mais fácil ler do que escrever, querida, nas atuais circunstâncias? Estamos tremendo feito uma geléia dentro dessa caixa a mais tempo do que eu imaginava que seria.”
“Todos os livros ficaram guardados nas malas.”, respondeu Charlotte ainda escrevendo. Se você conhecesse Charlotte, teria reparado nos gestos que ela faria naquele exato momento, seu corpo representando de forma simples que estava prestes a alçar vôo... De alguma forma. Esticou a cabeça para trás, olhando para o teto do veículo, como alguém que tenta lembrar-se de algo, inspira o quanto o espartilho a deixa inspirar e estufa o peito, dizendo.  “E além do mais... O mundo lá fora está cheio de idéias fascinantes, mas nenhuma delas é minha. Aqui estão as minhas idéias.”
“Tenho medo só de imaginar que idéias são essas.”, disse Alice ajeitando a posição do chapéu, inclinado para a esquerda.
Charlotte ergueu o olhar para a mãe pela primeira vez em horas, e disse sorrindo.
“A senhora provavelmente teria.”

Três
Atravessavam o vilarejo de Cottageville. O Sr. Bucknell estava eufórico, apontando cada casa, monumento e loja da cidade para os filhos. Charlotte observava interessada. Os cidadãos paravam seus afazeres e suas caminhadas para ver o carro descer a rua. As mulheres sorriam e acenavam dando boas vindas, os homens, igualmente sorridentes, tiravam os chapéus e os punham sobre o peito se curvando levemente.
O Whitecrowned não se localizava exatamente em Cottageville, como antes Charlotte pensara, mas a aproximadamente um quilômetro ao sul, descendo o vale. Já se podiam ver os prédios longos e rebaixados da estrutura, refletindo pelas janelas a luz poente do fim de tarde.
Um som alto e grave aproximou-se rapidamente.
“Está ouvindo, Bruce?”, perguntara Charlotte.
“Acredito que sim, senhorita.”
O som vinha da direção do bosque, à leste de Cottageville, diretamente para eles.
“Será que...”, foi então que viu uma nuvem negra avançando rápido vindo da mesma direção do som. Não demorara nem dois segundos para perceber que não era uma nuvem. “O bando! A revoada de pardais está vindo!”
“Charlotte?”, chamou Alice.
“Pare o carro!”
Calculou que só haveria um meio de ver o fenômeno de perto, e a forma como se imaginou fazendo isso a encheu de excitação. Quando o carro parou, desceu e saiu correndo.
“Charlotte! Mas o que...?”, gritou Alice.
Charlotte não chegara a ouvir o final da sentença. Descera correndo a passos largos a colina que separava o vilarejo do hotel. A cada passo que dava sentia que não caía por muito pouco. Perdera os sapatos e o chapéu durante o percurso.
Os pardais Branco-Coroados voavam rápidos e ficavam mais próximos a cada segundo, e a cada segundo a euforia de Charlotte aumentava. Não entendia os motivos de estar fazendo aquilo, mas sabia que de alguma forma precisava fazê-lo. Algo em relação àqueles pássaros a atraía. Algo que a encantava e despertava nela coisas que não havia pensado antes, e coisas que mesmo já tendo pensado, não entendia.
Alcançara um campo de centeio no mesmo instante em que se viu afundar por uma escuridão precoce para aquele fim de tarde. Os pássaros cobriram a superfície da plantação por completo, um mar de sombra, um furacão de bater de asas. Uma urgência que só eles poderiam entender o motivo.
Charlotte desenrolara o xale que mantinha cobrindo a cintura do vestido, e o erguera com os braços abertos, como se voasse.  E era como se sentia. Voava e sentia como se si entregasse. O vento que abraçava seu corpo a impulsionava. Voava e sentia como se exigisse um direito que não possuía. Seu sangue quente era bombeado velozmente pelo corpo. Voava e sentia-se invencível.
E o era, pois sentia.
Reparara que, ao mesmo tempo em que os pássaros tinham um sentido e fluxo determinado, realizavam em seu vôo pequenas mudanças de velocidade, de altura. Lembravam um cardume de peixes nadando no azul escuro do oceano, desviando de predadores.
Mas logo foram embora. Seguiam em busca de um verão mais quente e mais farto que o da Carolina do Sul. Em busca de melhores condições, de uma vida melhor.
“Carreguem-me com vocês!”, pensou a jovem.
Tão logo fizera seu pedido em pensamento, e tão logo saíra do campo de centeio, tropeçara em algo, caíra e rolara alguns metros à frente.
Escutara alguém assustado, provavelmente por tê-la visto cair, e os passos desse alguém pisando firme na grama. Ao erguer a cabeça vira um rapaz aproximar-se desajeitado, com a mão erguida e o rosto afobado, vermelho de preocupação.
“A senhorita está bem?”







Ato II – Quando percebi que podia voar, e tive medo por isso.

Quatro
“Estou sim...”, respondeu Charlotte ofegante. Aceitara a ajuda do rapaz estendendo-lhe a mão. De pé, percebera que tinha se enrolado inteira no xale durante a queda, e estava mais preocupada em se livrar dele sem cair novamente do que reparar melhor no rapaz.
“Tens certeza? A senhorita te - teve uma queda séria...”
 “Está tudo bem. Por favor, não se preocupe. Eu só tropecei em alguma coisa...”
 “Ah sim. Eu vi”, disse ele, recuando para mais próximo da plantação, abaixando-se e pegando um livro. Charlotte parara para reparar melhor no rapaz. Provavelmente tinha sua idade, cabelos louros escuros e lisos como os de um bebê, cortados curtos. E olhos azuis, também de um tom escuro. Tinha um jeito bem inquietante. Parecia estar sempre apressado, como se quisesse livrar-se da situação em que se encontrava o mais rápido possível. Mesmo com uma dor terrível no joelho e arranhões no punho esquerdo, Charlotte pegou-se se divertindo observando o rapaz que parecia ser capaz de fazer e dar qualquer coisa para não estar ali. “A s-senhorita tropeçou n-nisso aqui...”
Ah, e ainda havia a gagueira.
“Romeu e Julieta”, leu Charlotte o título do livro que o rapaz erguia, entortando a cabeça. “Bom, ao menos não fui a primeira dama a cair por essa história. Mas acredito que devo ter sido a primeira a fazê-lo literalmente, não é mesmo?”
Era um comentário para quebrar a tensão, mas o rapaz pareceu não entender. Ou não gostar.
“A senhorita tem certeza de q-que está t-tudo bem?”, insistiu ele, reparando no leve sangramento dos arranhões no punho de Charlotte.
“Bom Deus! Estou bem!”, disse sorrindo. “Sobreviverei, juro!”
“Está c-certo”, disse ele em um meio sorriso, baixando a cabeça.
“Meu nome é Charlotte Eliza Bucknell!”, disse a jovem, desta vez ela lhe estendendo a mão.
“James.” disse o rapaz, aceitando o cumprimento.
Charlotte percebera que o jovem ocultara seu sobrenome, mas não dera importância.
“Estavas aqui para observar os pardais, James? Ou só para encher sua vida com um pouco de tragédia?”
“Tragédia?”, perguntou ele aparentemente confuso. “Só vim aqui para ler um p-pouco. Não s-sabia que os pardais vi-viriam hoje. Não é grande coisa.”
“Como não? Acho que o vôo deles foi a coisa mais maravilhosa que já presenciei!”
“Eles v-vem e vão sempre”, disse James de olhos baixos, mas fazendo gesto de pouco caso com mão livre. “E é bom ter cuida-dado. Ficar abaixo de tantos p-pássaros durante o vôo... A senhorita sabe.”
Charlotte achou graça quando James começara a corar ferozmente. Imaginava a figura que devia estar fazendo, toda amarrotada, ferida, com os cabelos mais bagunçados que nunca sem o chapéu para segurá-los, e descalça, com os dedos dos pés despontando para fora das meias tão delicadas. Não podia culpar o pobre rapaz, mas nem por isso tinha alguma pretensão de pisar em ovos com ele, estava tudo muito divertido, por isso resolveu tripudiar um pouco.
“O seu medo é de que eles evacuem na sua cabeça, não é mesmo? Mas não precisa, ainda seria um preço baixo a se pagar para se estar aqui e ver tão de perto. Imagino o quanto deve ser sem graça vê-los voar debaixo daquela varanda de hotel.”
Charlotte não achara que fosse possível que James corasse ainda mais, mas ele o fez.
“Estás hospedado no Whitecrowned?”, perguntou ela.
“Sim... e não...”, respondera ele.
“O senhor é bem esquisito, não é mesmo?”, disse Charlotte com uma pachorra que só ela mesma poderia ter. E ofereceu seu braço a James, sorrindo. “Pode me acompanhar?”
Mesmo extremamente intimidado com a postura de Charlotte, James logo aceitara o braço da jovem, com todo o cuidado e respeito que era esperado de um rapaz para com uma dama. E juntos abandonaram o esvoaçante campo de centeio sob a luz do por do sol, em direção à realidade que os aguardava.

Cinco
Mais tarde naquela noite, quando todos já estavam acomodados em seus quartos, Alice gritara como nunca antes com Charlotte. A menina já estava acostumada, ao contrário da mãe que a cada vez tinha de lidar com atitudes sempre mais insolentes da filha.  Mas antes disso, mais cedo, quando James e Charlotte alcançaram a bem construída estradinha de pedra que levava aos portões do hotel, encontraram Bruce a postos e nervoso, a meio caminho, aguardando que Charlotte chegasse para lhe entregar seu chapéu e calçados. Por mais que a menina vestisse seus utensílios todos no devido lugar (apoiada no ombro do incrivelmente tímido James), não havia como negar que no mínimo ela devia ter participado de uma revolta no mercado de peixes. E foi isso o que mais revirou as entranhas de Alice. Pois a apresentação de Charlotte dar-se-ia ali, naquele exato momento.
A família Bucknell estava sendo recepcionada com toda pompa e circunstância na grande varanda na entrada do hotel. Havia pelo menos três famílias conhecidas, funcionários servindo bebidas e petiscos, e tio Frank. Como dono de um hotel como o Whitecrowned, Frank Boone precisava atender a muitas exigências de etiqueta, mas para alguém com essa posição ele era bem despachado, e famoso por não se preocupar muito com nada. Talvez por isso fosse tão amigo do Sr. Bucknell. Frank, é claro, notara o estado em que Charlotte chegara, mas não se fez de rogado e a cumprimentou com o maior sincero sorriso, já característico dele. Ao contrário dos outros presentes, que não pareciam crer na visão diante deles.
Sob tantos olhares, Charlotte nem mesmo percebera quando James se fora, apenas reparara que seu braço já não a estava acompanhando. O rapaz nem mesmo cumprimentara os presentes. Dando um sorriso de canto de lábio – o que provavelmente o horrorizado com seu estado, William, pensara ser por causa dele – Charlotte notara que gostava cada vez mais daquele misterioso James.

Seis
Ao longo da semana, Charlotte tivera outras oportunidades de conversar melhor com seu futuro provável pretendente. Não por vontade própria, pois a cada palavra que eles trocavam, Charlotte percebia o quão distante de tudo o que valorizava e admirava William era. Em verdade, afirmar que eles trocavam palavras era elevar muito a normalidade da conversa. Apenas William falava, e Charlotte não só estava enjoada de ouvir tantas vezes o nome de William, como já estava cansada de escutá-lo narrar todas as suas aventuras pelo país, participando de competições de hipismo, ou gincanas de debates, ou em sessões de caça ao tesouro, que era como ele costumava chamar suas viagens com o pai com o intuito de arrematar peças históricas em leilões. Nunca uma caça ao tesouro tivera uma conotação mais chata. Quando William não falava dele, falava de alguém da sua família. O primo, por exemplo, estava em Estocolmo, na Suécia, competindo nos Jogos Olímpicos, na categoria de hipismo. Visivelmente, a seu ver, toda a família de William tinha uma paixão doentia por cavalos. E havia também a tia, dada como morta no terrível naufrágio do Titanic há quase três meses.
Foi naquele mesmo dia, após o almoço, depois de livrar-se da companhia de William e partir em direção aos jardins com seu caderno, que Charlotte reencontrou James. Ele ainda lia Romeu e Julieta.
“Eu já estava começando a pensar que o senhor fosse um fantasma”, disse sentando-se no batente que rodeava a fonte, ao lado dele. “O fantasma do Whitecrowned! Aquele que geralmente é visto assombrando os jardins e os campos, que lê tragédias, e derruba jovens damas indefesas.”
“Eu não a d-derrubei!”, disse ele, milagrosamente sorrindo. Mas ainda assim corado.
“Ah, derrubastes sim.”, dissera Charlotte.
Por um momento James abaixara a cabeça e fingira que retomara a leitura, mas percebera que seria muito rude de sua parte tal atitude, então voltou-se para sua companhia.
“Porque sempre a s-senhorita comenta comigo sobre t- tragédias?”
“Ah! Como estás a ler Romeu e Julieta...”
“E o que Romeu e Julieta têm haver com tragédia?”, perguntara ele nervoso de uma tacada só, sem gaguejar pela primeira vez em uma conversa com Charlotte.
Romeu e Julieta é uma tragédia! Esse romance foi baseado na famosa peça de Shakespeare. Deve ser a tragédia mais famosa... Espere um momento, não conheces essa história?”
“Bom, é a primeira vez que a leio”, respondeu James confuso. “Então quer dizer que o final é triste?”
“Sim, teoricamente sim, uma vez que eles morrem no final”
James parecera não acreditar no que acabara de ouvir. Sua decepção era tão grande que até mesmo seu rosto perdera mais o viço.
“Achei que era só um romance bobo... Que eles conseguiriam.”, e largou o livro no assento.
“Ah meu Deus”, exclamou Charlotte rindo exasperadamente. “Vais abandonar a leitura, não vais?”
“Qual o sentido agora? Quero dizer... Eles morrem.”
“Bom, em primeiro lugar, perdão por ter contado o final. Mas o senhor é a primeira pessoa que conheci que não sabia como essa história acabava, inclusive antes de lê-la. E em segundo lugar, não interrompa a leitura! É uma história triste, sim, mas também é linda. Precisas lê-la!”
“Suponho que sim.”
“JAMIE!”, alguém gritara.
James virou o pescoço rapidamente para trás e levantou-se de um pulo.
“J-já estou in-indo!”
“Estou aliviada. Então não és mesmo um fantasma!”
“Re-receio que não”, disse pegando o livro. “Com a sua licença, Srta. Charlotte.”
E quando já estava a alguns metros de distância, virou-se para Charlotte e disse ao segurar o livro com as duas mãos.
“Lerei.”

Sete
Foi com a ajuda da camareira de sua suíte que Charlotte descobrira quem era James. O rapaz morava no Whitecrowned, mas não como hóspede. James Barrie, dezessete anos, era filho de um dos cozinheiros do hotel. O momento em que fora chamado na fonte, naquela tarde, provavelmente tinha sido uma das ocasiões em que era solicitado para ir a cidade comprar algum ingrediente que faltava na cozinha, ou para ajudar a descarregar as compras na carroça. Embora, pelo menos fora o que a camareira dissera, o Sr. Frank Boone não gostasse que ele fizesse esse tipo de serviço. Tio Frank havia, por falta de palavra melhor, adotado James. O pai do rapaz estava no hotel desde quando este abrira as portas, fazendo do velho cozinheiro um dos funcionários mais antigos da casa. Tio Frank afeiçoara-se a criança, e desde sempre gostara de participar da vida do garoto, o educando, vestindo, emprestando livros. E assim vivera James, passando todos os anos de sua vida ali.
Desde que descobrira isso, o interesse de Charlotte por James aumentara. Passaram a encontrar-se bastante nos próximos dias. Primeiro sempre no mesmo horário, poucas horas após o almoço, na fonte do jardim, e depois, sempre que havia chance. Em uma das longas caminhadas que fizeram no perímetro da propriedade, Charlotte perguntara como alguém que era educado pelo tio Frank, e que lia tudo o que o mesmo lhe enfiava debaixo do nariz, não conhecia o famoso final de Romeu e Julieta.
“Nunca vi referências nos outros livros que li sobre essa tragédia, e o Sr. Boone jamais comenta sobre a história, nem sobre um personagem sequer, antes que eu termine a leitura.”
Charlotte também percebera que James não era gago, mas gaguejava quando estava nervoso, ou quando se sentia pressionado. Já fazia um bom tempo que ele gaguejara pela última vez em sua presença.
“E por falar nisso, a história é realmente muito bonita. Triste, mas bonita. Não estava acostumado a ler histórias em que o final não fosse feliz, acho que foi por isso que o Sr. Boone me deu esse livro”
Com o passar das semanas, Charlotte achava cada vez mais difícil se desvencilhar dos compromissos sociais que sua estadia no hotel exigia. Como não era hóspede, e sendo filho de quem era, James não participava de nenhum deles. Muito mais por falta de vontade do que por proibição, posto que tio Frank insistisse que ele fosse mais participativo. Alice já estava incontrolável, e chegara a proibir Charlotte de perder seu precioso tempo na companhia do filho do cozinheiro. Tiveram uma discussão séria naquela noite. E no dia seguinte, Charlotte e James se viram mais uma vez.
Passaram horas maravilhosas naquele primeiro de Julho. Correram pelo campo de centeio como se alguém os perseguisse. Riam como se houvesse apenas aquele dia para rir. Não havia tal coisa como o tempo. Só eles.
James a levara para o seu local preferido, à sombra de um salgueiro, perto de um riacho. Sentaram em uma raiz alta e Charlotte começara a ler passagens escritas de seu caderno. E ela jamais lera o conteúdo de seu caderno para ninguém.
“Penso na minha vida como uma história, e gosto de imaginar que alguém em algum lugar estar folheando as páginas de minha vida. Nunca gostei de ler histórias monocromáticas, previsíveis, sem conteúdo, por isso não quero que minha vida seja assim.”
Parara para observar James, e em como ele absorvia tudo aquilo. Ele parecia beber de suas palavras.
“Quero que minha história seja cheia de cores, que seja imprevisível, que possa instruir alguém sobre algum assunto. Minhas atitudes se resumem a sempre manter a história de minha vida o mais atraente possível para o meu leitor imaginário, porque só assim, acredito eu, ela será atraente para mim”
James acariciara seu rosto com as costas da mão. E ela o olhava intensamente. Ele estava tão mudado. Tão melhor.
“És incrível, Charlotte. Perto de você, sinto que posso voar”
Seus rostos estavam muito próximos. Um esquilo perdido e barulhento interrompera um beijo que estava prestes a acontecer. E a realidade caiu sobre eles.
“Já é noite! É melhor voltarmos.”, disse James. 

Andavam de mãos dadas, mal acreditando no que seus corpos faziam antes mesmo de palavras serem ditas. Sabiam o que sentiam. E bastava esse saber calado para se fazer construir aquele momento.
Estavam bem próximos do hotel quando uma multidão de homens segurando cães em coleiras aproximou-se. O cheiro de violência tomava conta do ar. O casal Bucknell destacou-se na multidão. Alice os alcançara e abraçara Charlotte.
“Onde esteve, minha filha? Desaparecera desde a manhã! Estávamos pensando o pior, íamos procurá-la! O que houve Charlotte?”
Antes que Charlotte pudesse entender o que acontecia, e explicar, William aproximara-se e dera um soco no rosto de James.
“SEU PORCO DESGRAÇADO!”
“JAMES!”, gritara Charlotte. “Mas o que...?”
“Esse rapaz lhe fez algum mal, minha filha?”, perguntara Phillip. Parecia ter chorado.
“Não! Do que o senhor está falando?”. William avançava para James, pronto para chutá-lo. Charlotte soltou-se dos braços de Alice e empurrou o futuro possível pretendente. “PARE AGORA MESMO!”
“Charlotte!”, exclamara Alice horrorizada. “O jovem Will veio para defender sua honra!”
“Quando minha honra precisar de proteção, eu a defendo! O que estão pensando? James não me fez nada, estávamos passeando, só isso!”
James levantara lívido. Seu lábio sangrava.
“Quem pensa que é, rapazinho, para sumir com minha filha?”, guinchara Alice.
James nada disse. Parecia incapaz de qualquer ação. Charlotte não podia deixar as coisas irem pelo rumo que estavam indo.
“Eu gosto dele. Ou melhor, eu o amo!”, e virou-se para James. “Diga a eles. Diga a eles que serias incapaz de me fazer mal.”
Ninguém falava nada. Até mesmo os cães estavam quietos. E James parecia mais perdido que todos. O rapaz olhava para Charlotte, e chorava.  Olhava em volta, e parecia engasgar a cada respiração. Era tudo o que fazia.
“James, essa é uma das primeiras situações na minha vida em que não depende só de mim conquistar alguma coisa. Não posso fazer isso sozinha.”, chorava Charlotte. “Preciso de você.”
“S-sinto mu-muito!”, As lágrimas rolavam pelo rosto do rapaz. “L-lamento.”
E correra em direção à porta dos fundos do hotel.













Ato III – O dia em que voei

Oito
Três dias se passaram desde a última vez em que vira Charlotte. Desde o dia em que a perdera. E desde esse dia quase não saíra do quarto. Muitos já tentaram falar com ele; seu pai, o chef de cozinha, e Judith, a camareira. Estes tentaram consolá-lo, mas outros vieram com o mero intuito de saber o que acontecera naquela noite. Em verdade, a única pessoa das quais ele sabia que viriam falar com ele, e que não viera ainda, batera em sua porta naquela tarde.
O Sr. Frank entrara sério e altivo assim que James abrira a porta. O saudoso mentor e mestre deixara claro o quanto estava desapontado, e de como jamais esperara que James tivesse se comportado daquela forma. Mas o que surpreendera James de verdade fora o que o dono do hotel falara logo depois.
“Sabe, meu jovem, intercedi por você. Phillip Bucknell é um amigo querido, ao qual estimo muito. Disse a ele e a sua digníssima esposa que você é como se fosse filho meu, e que sua honra era algo além de qualquer questionamento. Mas receio estar enganado.”
James estava sentado na cama, olhando para os próprios pés. Desde que vira Charlotte chorando lá fora percebera que nada mais teria capacidade de feri-lo com tamanha intensidade.
“Tantas conversas que já tivemos! Tantos livros que indiquei que lesse! E deixastes a dama em apuros! A dama suplicara apoio e virastes o rosto. Conheço aquela menina desde o dia em que nascera. Charlotte é uma guerreira, e a vejo batalhar por tudo em que acredita desde o dia em que aprendera a falar. Depois que fostes embora, o Sr. William Connolly ainda tentara se aproximar dela. Mas ela o chamara de verme na frente de todos, e disse que de pessoas como ele ela só desejava uma coisa. Distância. Aquele rapaz é simplesmente o solteiro mais desejado da estação. E ela o teria a qualquer momento, se assim desejasse. Mas não, dentre todos os outros, ela quis você. O que me diz?”
Será que ele não entendia? Será que ninguém entendia? Como James poderia estar com Charlotte? O que ele tinha? O que ele era?
“A família Bucknell está nos deixando hoje. Em poucos minutos, eu diria. Charlotte não deixara seus aposentos desde aquela noite. Uma flor murcha. Em pleno quatro de julho! Perderão todos os festejos da festa da independência.”
O Sr. Frank ainda esperara que James falasse algo. Quando não obtivera sucesso, dirigiu-se à porta. 
“É uma pena que esta história termine assim”, disse antes de se retirar.

História. Fora preciso quase meia hora para que James percebesse o erro que cometia. E não havia tempo a perder. Talvez já fosse tarde demais. Saíra desembestado do quarto, sem pensar em mais nada, sem nem ao menos pensar em melhorar sua aparência deplorável.
Subira tropeçando as escadas até o salão de festas e disparara em direção a porta de entrada. Esbarrara em senhoras e senhores da alta sociedade, derrubara bandejas das mãos de garçons. Nada mais importava. Em algum lugar do salão ouvira a voz do Sr. Frank para ele, gritando que conversara com o motorista Bruce, e de como este dirigiria bem devagar.   
Nos jardins de entrada muitas pessoas encontravam-se sentadas em longas toalhas, preparando piqueniques, na expectativa dos fogos de artifício logo mais à noite. Pulara por todos eles. Voara por sobre eles.
Logo o tal de William erguera-se na esperança de impedi-lo.
“Onde pensa que vai seu por...”
O soco de direita de James veio com a força de sua euforia, de sua vontade de falar com Charlotte. Anos mais tarde William ainda negaria este episódio com toda convicção do mundo. James vira o carro subindo lentamente a estrada em direção a Cottageville. 
“CHARLOTTE!”
O carro continuou seu percurso. Ele ainda ouvira os sons exasperados das pessoas ao redor, reprovando seu comportamento rude. “Para o inferno, vocês!”, pensara o rapaz.
“CHARLOTTE!”
A estrada fazia uma lombada em semicírculo diante dele, e só havia uma chance de alcançar o carro. Correu cortando pelo campo central, voando por cima de mais e mais toalhas de piquenique.
Chegara à estrada jogando-se na frente do Nash Rambler, parando-o com as mãos no capô. Sentiu-as queimar, mas não deu importância. Podia vê-la sentada no banco de trás. Como era linda!
“Charlotte, perdoe-me! Por tudo o que é mais sagrado, me perdoe! Eu sou um idiota! O mais idiota dos idiotas! E um mentiroso! Lembra quando eu disse que não me importava com o vôo dos pardais? Eu menti. Não sei bem o porquê, mas eu menti! Todos os anos, na mesma época, sento-me próximo ao campo de centeio e espero a chegada deles! Esperava que eles me trouxessem alguma coisa, que mudassem algo em mim. Algo que nem eu sabia direito o que era, mas sabia que não se encaixava. Sei agora que é o meu medo. Meu medo da vida. E eu estava certo, sabia? Estava certo em esperar que eles me trouxessem minha salvação. Pois eles me trouxeram você!”
Charlotte descera do carro, e não encontrara resistência da família por isso. Vestia-se como devia se vestir, seus cabelos revoltos presos por baixo do chapéu inclinado. O olhava com uma expressão de quem não acredita no que está vendo.
“Eu a amo, Charlotte. Amo-a desde o primeiro momento em que meus olhos pousaram em você! Quando vi seu corpo e seu espírito livres voando junto com os pardais, soube naquele momento que você era quem eu estava esperando. E desde então passei a amar cada vez mais tudo em você.”
“O seu andar, e de como não parecia de forma alguma tocar o chão. Mas não de um jeito delicado! Não, de um jeito feroz! E o seu olhar. Percebi o quão inquieto ele é, e de como ignora propositadamente as coisas que o desagradam. E de como seus olhos encaravam os meus sempre que eu falava. E de como quase sempre olham o horizonte, não de maneira esnobe, mas de uma maneira sonhadora. Como alguém que sabe o que quer, o encara e não o perde de vista. Eu te quero Charlotte! Bom Deus, como eu te quero!”
Charlotte chorava, e seu riso iluminava tudo em volta.
“Percebi que todos esses anos tenho feito da minha vida a história mais monocromática, previsível e sem conteúdo que já se ouviu falar. E não quero mais isso. Quero você. E você, meu amor? És capaz de me perdoar? És capaz de retribuir o amor desse pobre coitado, louco de amor e de vergonha por ser tão idiota? Como Charlotte? Como quer que seja a história da sua vida?”
Charlotte estava já bem próxima a ele. Todos da família, e Bruce, haviam descido do veículo. Uma multidão de hóspedes assistia a tudo. Mas no mundo só havia Charlotte para se ver, e sua voz para se ouvir.
“Quero que a história da minha vida seja com você.”, disse ela radiante.
James não pôde segurar a felicidade que sentia. Avançou até ela, segurou-a pelos braços, e a tentou beijar, desajeitado. Teria conseguido se o chapéu de Charlotte não o atrapalhasse. Então o arrancou, jogou para longe, e o beijo aconteceu. Os dois precisavam daquele beijo, sabiam que sim. O primeiro de muitos. O beijo que encerra essa história e inicia outra.

NoveOitenta e três anos depois
O jovem James, agora com cem anos, terminara de narrar sua história a Jeena, sua neta mais jovem, de dezoito.
- Ao contrário de tudo o que se esperava, minha querida, os pardais voltaram naquela mesma tarde de quatro de julho de 1912. Abençoando nosso reencontro”
Jeena fez cara de descrente, e o contestou.
- Mas como? Assim tão cedo?! - Jeena era uma Charlotte de dezoito anos e cabelos curtos. Mais curtos que qualquer rapaz naqueles dias.
O jovem senhor sorriu matreiro.
 - Tudo bem, essa parte eu inventei. A volta deles ainda estava longe. Mas achei que a história terminaria bem se fosse assim.
- Dramaticidade de diretor de teatro! – rira Jeena. – A vovó teria gostado desse fim... Adorava uma extravagância aqui e ali, em pequenos detalhes. Dizia que...
- Que era mais gostoso atuar quando o próprio texto parecia ser um ator. Sim, ela dizia isso. Viu como essa cabeça velha está melhor? A caduquice pode ter me levado muitas coisas, mas não me levaram você, nem a minha querida Charlotte. E então? Acha que já tem material suficiente para o seu curta? É assim que chamam na faculdade de cinema, não é?
- É sim. É incrível. Tudo isso é incrível! Achei que teria de pesquisar por outras fontes, menos confiáveis e muito menos interessantes – disse Jeena, dando um beijo no Vô Jamie – Achei que... Achei que suas lembranças estivessem...
- Pelo jeito as coisas da vida possuem infinitas formas de se expressar, não é? – riu James - Eu te conheço, não conheço? Sei quem você é, e sei quem eu sou. E Charlotte! Todo o resto está por trás de uma neblina densa, pela qual eu agora não posso enxergar. Mas o que eu enxergo agora, e graças a você minha neta querida, é o que importa! O que mais importa! Minhas lembranças não estão mortas, elas ainda existem! Escondidas por trás dessa neblina, mas existem! E você me fez lembrar a mais importante delas! E mesmo agora, que estou indo embora, você perpetuará essas memórias. Muito obrigado por isso.
Naquela noite, James olharia o quadro para o qual Charlotte posara pouco antes de falecer, pendurado em frente à cama. Faceira, exuberante, com um corpo mais bem desenhado que muitas mocinhas por ai. Cabelos prateados. Como estava linda em seu vestido de gala. A mais bela e premiada cantora, escritora e atriz dos últimos tempos.
Fechara os olhos com a visão do quadro, e os abrira para a jovem Charlotte, o chamando enquanto voava pelos campos de centeio.

Fim