sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Desafio #4 Projeto Pena e Nanquim - Guerra, Morte e Sangue.

Redenção

– Antonio Caetano –

Sebastian fez Fúria transpassar o velho.
A barba branca e pontuda da velha raposa ficou empapada com a baba que vazava suja de sangue.
A espada perfurou e destruiu o que encontrou. Armadura, cota de malha, esterno e coração. Cortando e invadindo. A sensação não era nova para o guerreiro. Matara seu primeiro oponente os dezesseis anos, e aos 23 já havia perdido a conta dos que morreram por Fúria.
Transpassar.
Era assim que ele preferia matar. Sentia como se invadisse o direito à vida do outro. Como se violentasse aquela forma de vida que dependia apenas dele para prosseguir. E enquanto podia, enquanto era possível, transpassava.
A morte causada pela espada alimentava velhas e familiares necessidades. Não era como espetar terra fofa, como se lembrava de ter feito diversas vezes, brincando com uma espada de madeira na fazenda onde cresceu. Havia diferentes estágios da perfuração no corpo, e sentia no punho cerrado esses estágios.  A vestimenta férrea da armadura não provia tanta graça, pois não era viva. Mas a pele, a carne e o osso, com tantas texturas diferentes, interligando-se em laços de vida e morte, essas sim eram sensações dignas de um homem experimentando a vitória em batalha.
Mas abrir alguém à lâmina era só a primeira parte. O corpo se abria e as sensações que isso trazia eram únicas. Na febre da batalha essas sensações eram prazerosas, catárticas. O sumo da vida fluía, água e sangue vazavam, banhando o corpo do oponente, a terra e a si mesmo. Mas nada era mais impressionante do que o momento em que a alma deixava o corpo. E aquele momento, ele tinha certeza, podia ser visto nos olhos do derrotado. As pupilas dilatavam, abriam-se como o corpo transpassado. O negro da morte expandia-se nos olhos do oponente, e a alma escapava. 
O dono de Fúria era um filho da guerra. Era feito de guerra. E a guerra em que lutava agora mudaria tudo, formaria tudo, e ao mesmo tempo em que destruiria, construiria. Todos os outros lutavam pelo mesmo motivo, mas ele tinha um motivo particular. Só queria saber a verdade. E mataria quem encontrasse na frente para consegui-la.
*
Antes o mundo vivia em paz. Ou pelo menos um período de paz entre guerras. Lembrava de correr por pastos sem fim, de escalar em árvores e se banhar em rios. Ajudava seu pai no serviço. Seu pai, olhos claros, arregalados e imóveis, de pupilas dilatadas.
No dia da morte do pai estava ao lado dele, ajudando no arado. Havia atirado uma pedra em um passarinho pousado em um arbusto. O pai, que era sério quase todo o tempo, o repreendera e envolvera o passarinho em suas mãos enormes. As mesmas mãos que partiam a lenha e que aravam a terra mostravam-se delicadas, acariciando o corpinho diminuto do pássaro. Lembrava de ter perguntado ao pai sobre a muralha naquele momento.
“O que tem além da muralha, papai?”
“Porque essa pergunta agora, menino?”
“Todo mundo fala que temos que ir pra lá, e que lá é bom.”
O pai estava concentrado na massagem que fazia no passarinho.
“Nossa vida é aqui.”, dissera o pai.
Ele não entendia muito das coisas que o pai dizia, a não ser as coisas que ele era mandado fazer.
“Mas mamãe diz que todo mundo está indo pra lá. E que deveríamos ir também. Que lá é mais seguro. Pra quando a muralha sumir, agente poder ir pro outro lado...”
“Nossa vida é aqui”, dissera o pai novamente. “As pessoas só tem que fazer aqui o que esperam encontrar lá.”
Igual das outras vezes, o menino não entendera.
“Como?”
“Comece fazendo isso”, disse o pai sério, enquanto estendia as mãos ao filho, oferecendo o passarinho. O ensinara a aquecer o animal com o hálito e a lhe alisar as costas. O pássaro alçou vôo logo depois. Pelo jeito não estava tão machucado, afinal.
Já quase escurecia quando pai e filho caminhavam juntos na volta pra casa. No meio do caminho um grupo de cinco homens – lembrava que eram cinco, pois tinha acabado de aprender os números e havia contado os homens diversas vezes – se aproximou. Ele não entendia o que queriam, mas falavam de uma espada. Queriam uma espada. O pai não dera – é claro, o pai não tinha espada, só uma enxada – e disse aos cinco homens que deviam ir embora.
Eles não foram embora. Um deles gritou. O outro apontou para o menino, e foi aí que o pai gritou e bateu no homem. O pai batera em outros homens, e eles revidaram. O garoto não fizera nada. Não podia fazer nada. Não gritara, não chorara. Aquilo era mau, mas ia acabar. Sabia que o pai conseguiria, pois o pai iria deixá-los seguros, como sempre fizera. Um dos homens, ele lembrava que era o mais velho, feriu o pai com a espada. Lembrava da ponta dela aparecer vermelha pelas costas do pai, como um espinho sendo espremido pra fora. O homem mais velho puxara a espada de volta, e o pai caíra.
O guerreiro não se lembrava dos rostos dos homens. Queria lembrar. Queria guardar na memória os rostos dos assassinos de seu pai e de sua mãe. Nem ao menos lembrava o rosto de sua mãe. Sobre a morte dela sabia menos ainda. Apenas o que os outros lhe contaram. De como o menino arrastara o corpo do pai de volta, e de como cinco homens haviam incendiado a casa com sua mãe dentro. Nada do que contaram mais tarde acendera mais lembranças pra ele. Só se lembrava do rosto do pai, e de como estava pálido, e de como os olhos claros dele tinham as pupilas dilatadas.
Hoje não lembrava quase nada. Lembrava que havia cinco homens, mas não lembrava seus rostos. Lembrava que eles queriam uma espada, mas não se lembrava de ter escutado o motivo. A espada que queriam estava com ele agora. A espada que tinha o nome de Fúria escrito no aço.
Os cinco homens queimaram a casa sem saberem do alçapão debaixo da cozinha. Era lá que Fúria estava. O pai a guardara bem seguro e nem mesmo sua esposa jamais soube. A pobre mulher morrera protegendo algo que não sabia existir.
Hoje o guerreiro tinha apenas muitas perguntas. E ela se formara quando o fazendeiro, vizinho e amigo da família, o homem que o tinha criado, lhe contara algo sobre a espada.
“O seu pai uma vez falou que esteve do outro lado da muralha, bem antes de ter casado com sua mãe. Eu costumava implicar com ele por causa disso, sabe? Ele dizia que trouxera um tesouro de lá, uma espada muito bonita, de um metal que ele nunca tinha visto. Eu, ainda sem acreditar, pedia pra ver a tal espada. Mas ele nunca me mostrou, e nem a ninguém, dizia que podia ser perigoso. Por muito tempo pensei que fosse mesmo mentira, e que essa espada não existisse. E mesmo ele jamais voltara a tocar no assunto. Mas agora, aqui está ela, bem na minha frente! Precisamos escondê-la outra vez, e você não pode contar a ninguém sobre ela, entendeu menino?”
A pergunta que queimara dentro do menino transformara-se em um objetivo. Um sonho. Uma obsessão que não o abandonara desde o dia em que ouvira a história sobre o pai e Fúria. Iria atravessar a muralha. Algo sobre esse lugar o remetia ao seu pai. Não tinha esperanças bonitas sobre lá, nem qualquer ilusão sobre uma vida melhor. Sua vida fora consumada anos atrás. Mas precisava saber desesperadamente sobre Fúria. Precisava saber o que a espada significava e o quanto valia. Ela tinha de valer alguma coisa! Sua família morrera por ela. E precisava saber a quem pertencia.
Pertencera. Ninguém a tomará de mim.
*
Tudo sobre a muralha era um mistério. Na época em que o pai de Sebastian nascera foi quando ela surgiu. Simplesmente aparecera, era o que diziam. Um dia não estava lá, e no dia seguinte estava. Logo todos se perguntavam o motivo disso. Não era coisa de gente, isso com certeza. Para uns, a muralha era coisa de Deus, para outros, de Deuses. E da Sombra, para poucos. Uma opinião permanecia universal: estavam sendo isolados.
Muitos eram aqueles que também almejavam atravessar a muralha. E muitas tentativas de derrubá-la ou perfurá-la foram feitas. Sua extensão era enorme, e por mais que caminhassem acompanhando-a, jamais encontravam um fim, ou sequer uma falha. Não se sabia se a muralha os mantinha presos, ou se prendia alguma coisa. Ela também não fazia sombra, motivo de dor de cabeça dos estudiosos.
Também não se via o topo. Era mais alto que as nuvens, mais alto do que qualquer pássaro poderia voar. E mesmo sem ninguém jamais ter visto o topo, muitos tentaram escalá-la. Todos morreram tentando. Por mais que os cuidados fossem tomados, e que ano após ano geringonças cada vez mais elaboradas fossem construídas, para auxiliar na escalada, a muralha simplesmente derrubava a todos, implacável.
Com o passar do tempo a palavra dos sacerdotes tornara-se a única creditada – porque os investigadores e estudiosos simplesmente não conseguiam chegar à conclusão alguma –, embora facções diferentes começassem a rivalizar, cada uma tendendo para lados diferentes da suposta verdade. Enquanto um grupo dizia que a muralha era um castigo, um aviso, e um símbolo da vergonha humana, o outro grupo dizia que ela era o alicerce que passara a segurar as duas metades do mundo, que havia se partido. E havia aqueles que acreditavam que um motivo era a causa do outro.
Todo o dia, no mesmo horário em que se sabia que a muralha tinha surgido, crentes paravam o que estavam fazendo e começavam a rezar na direção da mesma, pedindo perdão e sabedoria. E uma vez por ano, na data do surgimento, a grande peregrinação acontecia, levando milhares de crentes a se lamentar na muralha. Faziam pedidos, faziam promessas e agradeciam. Tornara-se costume escrever na muralha o que se desejava alcançar; uma graça, um milagre. Sendo a grande maioria o nome de pessoas enfermas, para que se curassem.  
Cidades foram construídas às margens da muralha. O pensamento geral era que, se um dia ela surgira do nada, talvez desaparecesse da mesma forma. E assim, quem estivesse perto para presenciar, finalmente compreenderia.
Fosse o que fosse, independente de qualquer coisa, a muralha continuava lá, vasta e infinita, avançando por sobre terras e mares. Sendo intransponível e desejada. Ignorando a todos. E jamais sendo esquecida.
*
A guerra pela posse da muralha tivera início há pouco mais de um ano. Mas desta vez era diferente. A impressão que se tinha era que o mundo se acabaria com esta guerra, e que desta vez seria tudo ou nada.
A tensão iniciada há setenta anos, no dia do surgimento, não fora nada comparado ao que se instalara há um ano. No passado houve lutas, sim. Em grande parte por medo do desconhecido, por divergências religiosas e disputas por terras à sombra da muralha, consideradas melhores.
Mas isso foi antes da porta. Desde sempre, a muralha fora lisa como mármore, negra como carvão e intransponível. O mundo acostumara-se com isso. Mas do nada, lá estava ela, uma porta com no mínimo cinqüenta metros de altura e vinte de largura. Localizando-se em uma parte da muralha extremamente conhecida, onde anualmente pessoas rezavam, choravam e imploravam por milagres. Em uma parte da muralha onde jamais houvera porta alguma.  E o significado disso era claro como água.
Depois de tanto tempo imaginando, e de tantas tentativas frustradas de atravessá-la, a muralha finalmente se pronunciara. Uma passagem. A responsável pelo início da guerra atual.  
*
Aquele mundo conhecia duas potências, o Clero e a Monarquia. E um mundo erguido sob tais forças, via constantemente certas alianças sendo feitas e desfeitas. Tanto o Gran-Sacerdote quanto o Rei, e falamos aqui em títulos, não em indivíduos específicos, eram a grande Aliança que movia o mundo. Amigos que apertavam as mãos direitas e cruzavam os dedos pelas costas com as esquerdas. Confiava-se desconfiando, e assim a “paz” seguia em frente.
Clero e Monarquia erguiam forças com o intuito de evangelizar o mundo e proteger o rei, respectivamente. Há muito tempo, verdadeiras armas humanas vinham sendo criadas por estas duas potências. Começou com o Clero, quando crises com religiões pagãs e rumores de magias curativas se alastravam por todos os cantos do mundo. Estas outras religiões, batizadas pelo Clero como seitas, ameaçavam o poder do Gran-Sacerdote, à medida que o número de seguidores aumentava.
Para exterminar esta onda profanadora, o Gran-Sacerdote da época solicitou soldados ao Rei, para que decapitassem, enforcassem e queimassem qualquer um que demonstrasse sinais de heresia. E pensando em um controle à longo prazo, criou o Chamado - um recrutamento de meninos com menos de dez anos para dedicar sua vida aos propósitos da igreja. Estes garotos eram educados e ensinados nas mais diversas artes que os livros podiam proporcionar, assim como qualquer arte que os melhores mestres guerreiros poderiam forjar. Com o tempo, o Gran-Sacerdote tinha em seu poder umas das forças mais letais do mundo.  
Décadas mais tarde, durante um torneio, o rei vigente na época sentiu-se seriamente ameaçado ao presenciar as habilidades dos recém proclamados Guerreiros da Paz. Por esse motivo resolveu cobrar a dívida que a igreja tinha com o reino, quando solicitou os soldados que livraram a terra dos hereges. O que ele queria era o conhecimento para forjar guerreiros como aqueles, mas sabia que o Gran-Sacerdote não entregaria seu trunfo. Então pediu cinco Guerreiros da Paz, à sua escolha, para que fizessem parte de sua guarda. E assim foi feito.
Os cinco Guerreiros da Paz levados pelo rei foram os fundadores do atual Exército Real. Mais tarde, em uma das disputas travadas pelas duas potências, provaram-se extremamente leais ao rei, lutando com antigos parceiros aparentemente não fazendo diferença entre eles e qualquer um com quem tivessem de travar batalha. A partir desse dia também passaram a ser conhecidos como Os Corações Leais. Uma força tão letal quanto àquela que lhes deu origem.  
Naquele tempo não se imaginava que as duas potências entrariam em um conflito definitivo, muito menos que o objetivo desse conflito seria decidir quem teria o direito, ou não, de atravessar uma porta.
*
A marcha para a muralha durara quinze dias, com três paradas por dia. Mas para alguém com a determinação de Sebastian, e que como ele, esperara por essa oportunidade perfeita a mais tempo do que gostaria de admitir, não era uma jornada cansativa. A cada metro que avançava mais perto a muralha ficava.
Em sua marcha, Sebastian aliara-se aos Rebeldes. Nas comitivas rebeldes o sistema hierárquico funcionava da seguinte forma; quem matasse alguém de patente alta, sendo do Exército Real ou dos Guerreiros da Paz, e pudesse provar tal feito, recebia uma patente compatível com a do homem que havia matado. O capitão, por exemplo, matara o general Io, o todo poderoso responsável pela guarda da bastilha, num levante vitorioso que levara à soltura de cinqüenta companheiros condenados à morte. Bateram em retirada muito antes que o Exército Real chegasse, e desde então eram o inimigo número um do estado, e de Deus.
Sebastian não matara ninguém importante, por isso ingressara sem pretensões no grupo. Mas com o tempo, ao verem o que ele se tornava quando brandia sua espada, ganhara o respeito dos companheiros e o direito a lugares de honra durante os saques. Como ficar ao lado dos companheiros de patente mais alta no último saque feito no posto Sul da Igreja. Tais postos eram de uso exclusivo dos Guerreiros da Paz, e geralmente estavam entupidos com os melhores equipamentos.
Os rebeldes viviam de saques, e o ódio que sustentavam pela igreja e pelo rei eram seus lemas principais. Não queriam se submeter. Viviam como desejavam e iam para onde queriam ir. Além de apreciarem uma boa luta. Por isso era fundamental que eles fossem peça importante nas mudanças que o mundo vivia
O clero reclamara a entrada para o outro lado da muralha como sua, tomando posse do que estivesse além dela. Afinal, a muralha fora construída por Deus, e só a igreja devia ter o poder sobre seus mistérios. Mas o rei também reclamara seu direito à passagem e à tudo o que estivesse do outro lado. Afinal, a muralha era divina, e o rei era o homem escolhido por Deus para guiar o povo e reinar sobre eles.
E mesmo os rebeldes, que não hasteavam bandeiras, sabiam que além daquela parede colossal teria de haver algo de poderoso. Portanto nem a igreja e nem o rei deveriam por suas mãos cobertas de anéis sobre ele.  E assim a marcha para a muralha iniciara.
*
Sebastian e o restante dos rebeldes, depois de erguerem acampamento na primeira noite de marcha, se reuniram para discutir os cenários que se estabeleciam. Falaram sobre as alianças necessárias que o Clero e a Monarquia precisariam fazer para arrebanhar milhares de homens para lutar por eles, pois tanto os Guerreiros da Paz quanto os Corações Leais eram valiosos demais para serem gastos matando uns aos outros. Eram uma peça importante, e tinham de ser usados na hora certa.
Havia dois grandes e famosos grupos de mercenários, que cobravam caro justamente por terem bocas demais para alimentar. Os Crânios e os Errantes. As promessas do Clero, assim como uma boa quantia de entrada, atraíram os Crânios para o seu lado. E o simples fato dos Crânios fecharem negócio com o Gran-Sacerdote, foi questão decisiva na aliança feita entre o Rei e os Errantes. 
E assim novos grupos seguiram suas preferências, sucessivamente. Pois a muralha era uma questão mundial e todos queriam atravessar.
Seguindo os Crânios e consequentemente a igreja, vieram os Filhos do sol, selvagens de pele vermelha, do extremo ocidente. Os Peregrinos, com suas comitivas infinitas de carroças enfeitadas de guirlandas, e os caçadores, homens simples, tementes a Deus, que passavam mais tempo na mata caçando do que na presença de qualquer outro ser humano. Não eram guerreiros de batalha, mas guerreavam a cada dia por abrigo, comida e umas poucas moedas para sustentar a família. Eram durões o bastante. Ou ao menos o eram para morrer na linha de fronte.
Do outro lado, seguindo os Errantes e o Rei, estavam os Canos Longos, um povo costeiro, pescador, comumente vistos usando suas botas de canos longos para pescar nos extensos costões rochosos, usando arpões e lanças. Seus frutos do mar eram muito apreciados na corte. Logo depois vieram os Herdeiros, um grupo de mercenários menor que se separara dos Crânios décadas atrás, e clamavam suas pretensões de serem mais valorosos e mais poderosos mercenários que seu grupo de origem. E os Sanguessugas, gente da pior espécie. Muitos inclusive acreditavam que não eram gente, e sim um tipo de povo primitivo, que não tinham um pingo de civilização na mente. Eram brutais, frios e, o mais importante, assassinos cruéis. Batizaram-se de Sanguessugas por se darem o trabalho de desmembrarem os inimigos caídos até a última grama, manchando todo o campo com sangue. Não era uma estratégia muito boa, perdiam muito tempo e podiam ser mortos facilmente no meio de seu ato sanguinário. Mas eram um povo estranho, e metiam medo.
Sebastian poderia estar em qualquer um desses grupos, mas lhe pareceu mais certo permanecer com o grupo de pessoas que fariam tudo para conseguir seus propósitos, menos fazer alianças. Não queria ter nada haver com ninguém. Não queria nada de valor que pudesse estar do outro lado da muralha, não queria ter terras, nem milagres. Queria saber a verdade. Queria saber sobre Fúria. Queria saber por que sua família tinha morrido.
E do outro lado era o único lugar que, ele tinha certeza, encontraria essas respostas.  
*
De onde estavam, no alto de uma colina, a uns três quilômetros da muralha, Sebastian e os rebeldes tinham uma boa visão dos acontecimentos. A gigantesca muralha, de frente a eles, ficava ao sul, enquanto que as forças do Rei vinham do oeste, e as do Gran-Sacerdote, do leste. Por trás e ao redor deles, cadeias de altas colinas formavam um corredor estreito para o campo de batalha. Algumas das colinas possuíam formações rochosas, um esconderijo perfeito para a confecção de uma emboscada. Mas o capitão já enviara batedores para estes locais, que logo voltaram e garantiram que a área estava limpa. Um erro imperdoável das duas potências e seus seguidores.
 A cidade construída na base da muralha estava vazia. Ninguém queria estar por perto quando o caminho das marchas colidisse. Estavam certos. A visão de Sebastian e do resto dos Rebeldes era um verdadeiro mar de pessoas colidindo. Os sons dos gritos de raiva e de dor somavam-se com os sons das lâminas das espadas colidindo e com o relinchar dos cavalos. Ainda não havia muitos mortos, e os gritos do calor da batalha ainda reverberava com força, o que fez Sebastian calcular que ainda não se passara muitas horas desde que tudo começou. E como previsto, a luta pertencia aos mercenários naquele primeiro momento, assim como todos os outros grupos menores de civis. Os sete mil Guerreiros da Paz enfileiravam-se em suas montarias atrás de seus mercenários, observando e aguardando. O mesmo se dava com os cinco mil Corações Leais. 
Sebastian estava inquieto. A porta imensa, incrustada na muralha, era facilmente visualizada por trás da maior concentração de homens lutando. Lá estava sua passagem. A porta permanecia fechada desde que surgira, mas não importava. Sebastian sabia que atravessaria. Apenas tinha de chegar lá. Sua parceria com os Rebeldes seria crucial.
Não haviam se deparado com nenhuma sentinela no caminho, e ainda não tinham sido vistos por nenhum dos Guerreiros e dos Corações. Uma fraqueza imprevista, e que facilitaria tudo. Aqueles homens, tão bem treinados pelo clero e pela monarquia, pareciam padecer de um excesso de confiança que sempre era mortal no campo de batalha.  
Mais uma hora se passou desde que os rebeldes chegaram, e ainda não tinham sido vistos. A chacina lá embaixo continuava a evoluir. Sebastian avaliou e impressionou-se com o nível de luta dos mercenários. Crânios e Errantes eram facilmente distinguíveis, pois os Crânios usavam ossos em suas vestimentas. Ambos os grupos valiam o dinheiro que cobravam. As ações de ataque e defesa eram perfeitas.
Do lado leste, Os Filhos do Sol posicionavam-se logo à frente dos Guerreiros da Paz, atirando com suas setas envenenadas a longo alcance. Os Peregrinos não tinham ordem e estilos de luta bem definidos, mas se utilizavam de golpes baixos e truques de ilusão – lançando gases que dispersavam as formações inimigas, e eram tão lacrimejantes e ardentes que cegavam o alvo em segundos, tornando-os fáceis de apunhalar. Os caçadores eram também exímios nos arcos, mas se aproveitavam mais de seus machados.
Mais para o lado oeste, os Canos longos espetavam um inimigo após o outro com suas lanças e arpões, com tanta força e precisão que muitas vezes três homens eram empalados ao mesmo tempo. Os Herdeiros, cujos golpes de massa e espada quase sempre destruíam os escudos, se destacavam por sua força. Já os Sanguessugas... Sebastian não se lembrava de presenciar atos tão inumanos em batalha. Os monstros se banhavam em sangue por puro prazer, conseguiam arrancar corações só de enfiar as mãos garganta abaixo dos oponentes, e riam enquanto enforcavam outros com as próprias tripas.
Os Guerreiros da Paz avançaram. Os trotes de seus cavalos e o som de suas trombetas fizeram até mesmo Sebastian se arrepiar. Os Corações Leais fizeram o mesmo. A hora estava chegando.
Quando as famosas forças armadas do Rei e do Clero colidiram, a impressão que passava era a de que a batalha acontecia em um ritmo acelerado. Nada se comparava à agilidade e à pureza dos movimentos dos Guerreiros e dos Corações. Ambos possuíam montarias, mas isso não impedia que saltassem para a montaria do inimigo - no que Sebastian só conseguiu associar a movimentos circenses - matassem o oponente, e voltassem “voando” para sua montaria original. Ambos usavam uma espécie de arpão menor, ou como Sebastian chamava cabo-arpão, escondido por debaixo das vestes nos braços, bastando um único movimento rápido na direção do inimigo para fazer este cabo metálico e pontudo atravessar cabeças e pescoços com facilidade. Mal se acompanhava os golpes feitos com as espadas.
Meia hora mais tarde o capitão dos Rebeldes anunciara que a vez deles chegara. Sebastian mal podia conter sua euforia. Os Rebeldes iniciaram a descida pela colina em direção ao campo de batalha, berrando gritos de guerra incompreensíveis, com seus rostos transformados em carrancas monstruosas. Não era uma força tão grande, mas duzentos homens Rebeldes eram algo a se temer, principalmente com a vantagem do elemento surpresa ao seu lado. Foi então que o inesperado aconteceu.
Por detrás das colinas e suas formações rochosas, onde mais cedo os batedores rebeldes fizeram sua varredura, uma nova frota irrompera. Ou melhor, não uma nova frota, mas cavaleiros de Guerreiros da Paz e de Corações Leais. De repente os Rebeldes se viram cercados pelas duas potências, e não apenas pelos membros comuns de sua armada, mas pelos mais credenciados generais de cada uma. Reconheciam-se eles pelas medalhas com a pomba dourada no peito dos Guerreiros, e o pentagrama no dos Corações. A estrela de cinco pontas fazia alusão aos cinco membros do Exército Real entregues ao rei pelo Gran-Sacerdote. Os cinco primeiros, cujos cinco descendentes ainda faziam parte da armada.
“Os desgraçados vieram do nada!”, Sebastian não podia acreditar. “Separaram frações menores de suas forças e se uniram para nos emboscar!” O elemento surpresa tinha sido perdido com essa nova virada. Depois de tudo, estavam à mercê dos mortais cabos metálicos cuspidos por ambas as potências. Homens e mais homens Rebeldes tiveram as jugulares atravessadas em meio à cavalgada, e mais homens morriam quando Guerreiros saltavam de suas montarias e aterrissavam em cima deles, torcendo seus pescoços. Sebastian vira um dos Corações repetir os movimentos de saltos dos Guerreiros em sua direção. Sem parar a cavalgada desembainhou Fúria e cortou o desgraçado ao meio com um só golpe.
Fúria era capaz disso. Não mais se surpreendia com o poder de destruição da espada desde quando quase morrera ao desembainhá-la pela primeira vez. A morte brutal do Coração Leal chamou a atenção dos outros, que convergiram para Sebastian. Inclusive os cincos primeiros, com a insígnia do pentagrama em tamanho maior no peito, e capas brancas por sobre as armaduras. A visão de um deles, o mais velho, com uma barba branca e pontuda, liderando os outros quatro, trouxe de volta um sentimento em Sebastian que descera como um raio e quase o fizera cair do cavalo.
Sebastian não lembrava os rostos deles, só lembrava que eram cinco.
“É a espada!”, gritara o velho de barba pontuda. “Peguem a espada!”
Sebastian entendera, e dezesseis anos depois, lembrara. Puxara as rédeas do cavalo, forçando-o a diminuir a velocidade, e guiara-o em um giro de cento e oitenta graus. Confrontaria os cinco de frente.
Dois saltaram para ele como rãs, pernas flexionadas e braços prontos para liberarem os cabos-arpões. Os desgraçados pulavam alto, creditava isso a eles. O que saltara primeiro logo liberou seu cabo-arpão. Sebastian sentiu que este vinha direto para o meio de seus olhos antes de desviá-lo com Fúria. O primeiro dos assassinos de sua família a morrer, morrera cortado longitudinalmente, da base do pescoço à virilha. Fúria lhe garantia movimentos tão rápidos que quem via de fora mal podia entender o que se passava.
O segundo assassino de sua família recebera um corte que lhe arrancara o braço direito fora, antes que atirasse qualquer coisa. Deixaria aquele pra morrer depois. Mal pensara nisso e sentira outro cabo-arpão se aproximando. Desviara dele curvando-se para frente de seu cavalo. A decisão de abandonar a montaria veio rápida, e antes que percebesse imitara o mesmo salto feito pelos Corações e Guerreiros, aterrissando no terceiro assassino. Enfiara Fúria bem no meio do corpo do desgraçado, sentindo o sangue quente banhar-lhe a face. Virou-se rapidamente para trás desviando-se de outro cabo-arpão, enquanto deixava o quarto assassino que voava para ele duas pernas mais baixo. Aquele também morreria mais tarde.
O velho sobrara. Não pulara sobre ele como fizeram os outros, a raposa velha. Sebastian tomara as rédeas do cavalo e o direcionara para o último assassino. O velho, sem querer dar chances de ser dilacerado como os companheiros, impulsionou os dois braços e atirou dois cabos-arpões. Sebastian desviou um deles com Fúria e agarrou o outro no ar. Com um puxão derrubou o velho desgraçado do cavalo, que rolara por sobre a campina gritando.
Sebastian desmontara e fora direto para o velho. Estavam muito próximos da batalha em si, mas não chamaram a atenção de ninguém. O banho de sangue continuava inabalado. Passava do meio da tarde, e o clima, antes ameno passou a esfriar. O ar cheirava a morte.
A velha raposa levantou-se com mais desenvoltura do que Sebastian teria adivinhado. Não era à toa que o desgraçado era um dos Cinco.
“Sei exatamente quem você é, Sebastian”, disse o velho com um sorriso ferino. “E não é pela espada, não. Parece que estou diante de seu pai mais uma vez.”
“Não fale do meu pai.”
“Porque não falaria? Um dos meus melhores pupilos! Muito talentoso.”, vendo o rosto confuso de Sebastian, continuou. “É, rapaz. Seu pai era um dos Corações Leais, não sabia? O desgraçado... Eu devia saber que ele não contaria isso à família. Se tivesse contado talvez você não estivesse ao lado destes rebeldes imundos”
Sebastian preparou um golpe de duas mãos com Fúria, o velho não se moveu para se proteger. Apenas ergueu a mão como se pedisse permissão para falar.
“Não posso contra essa arma magnífica. O vi usar contra meus companheiros, e vi seu pai usá-la também. Sei do que ela é capaz. Não seria uma luta muito honrosa, é claro. Tenho certeza que podemos torná-la mais interessante...”
Sebastian fez Fúria transpassar o velho. Não tinha interesse em nada que ele tivesse para falar. Só tinha interesse em seus olhos, e em como queria vê-los daquela forma, arregalados, assustados, deixando a alma escapar. Então disse, cravando a espada mais fundo.
“É bom que não tenha família, seu desgraçado. Porque se tiver, trancarei todos eles dentro de casa e queimarei até o último pedaço que restar!”
Não faria realmente isso, mas ver a raposa velha morrer com terror nos olhos, fizera a mentira ser tão doce como o mel. Não tinha planejado encontrar os cinco assassinos, mas sentia que estava mais leve agora que essa parte de sua vida se resolvera. Ou melhor, não totalmente. Caminhou mais alguns metros para matar o segundo assassino, que agonizava sem um dos braços, e o quarto, que se arrastava sem as duas pernas. 
*
Seu problema agora era com a muralha. A batalha ainda se desenrolava, e ele caminhava ileso por entre ela, visando a porta. Alguns eventualmente tentavam pará-lo, mas morriam tão facilmente, que ninguém mais resolveu tentar. Ao finalmente se encontrar diante dela, percebeu uma falha à altura do peito. Não uma falha qualquer. Era reta, lisa e profunda.
Como se tivesse sabido disso a vida toda, desembainhou Fúria e a encaixou na falha.
Uma luz branca explodiu e se alastrou pelas colinas, cegando a todos por um segundo. E reinou o silêncio.
*
Ainda segurava Fúria enfiada na porta quando virou a cabeça para trás. Estava só. Não havia mercenários, ou sanguessugas, muito menos Guerreiros da Paz ou Corações Leais. A paisagem era diferente, havia mais verde, cheirava melhor e as cores eram mais vibrantes. Não muito longe, vira um homem se aproximar devagar.
Seu pai.
Sabia que era ele, aqueles olhos claros e bondosos não poderiam ter outro dono. O simples semblante do homem o fez chorar. Tinha atravessado.
“Meu menino”, disse o homem sério, como sempre fizera, e o abraçara.
Seu pai tinha a mesma aparência da época em que morrera, e os dois agora não distavam muito na idade. Poderiam passar por irmãos facilmente.
“Como isso é possível? Como o senhor está aqui?”
“Aqui não existe possível e impossível, menino. Aqui, se as coisas têm de ser, elas são.”
“Estou morto, então? Aqui é o paraíso do qual os sacerdotes tanto falam?”
O homem sorrira.
“Tudo o que se fala lá fora não chega nem perto de tudo o que há aqui. A Verdade é como nós a chamamos. E ela é tão bonita. Você não entenderia, ninguém entenderia. Mas um dia irão.”
“Tenho tantas perguntas... Preciso saber...”, disse Sebastian afoito.
“Acalme-se, acalme-se meu garoto. Você já sabe de tudo, não sabe? Apenas este lugar é feito de perguntas. E você? Sabe do que é feito?”
Sebastian respondera antes que pudesse pensar.
“De respostas.”
“Exato! Não há nada aqui que seja escondido, também não há mentiras. Como eu disse, a Verdade é tão maior do que tudo o que já se pensou, o que se pensa e o que se pensará sobre ela.”
Sebastian sentia isso. Podia se perguntar tudo! Qualquer coisa! E teria a resposta. Podia lembrar o rosto da mãe agora.
“O senhor atravessou a muralha porque eu fui o escolhido. Eu precisava vir aqui e voltar.”
O pai sorrira novamente. Sebastian continuou.
“O senhor atravessou sem uma porta, sem uma chave. Eles o consideraram digno... A Verdade o aceitou. Deram-lhe Fúria por ser um objeto que qualquer um cobiçaria. Mesmo os que o amavam. Mesmo o seu mestre. O senhor sabia que ia morrer, sabia tudo.”
O pai não sorrira ali, parecia até mais velho agora que Sebastian o observava melhor. Então o pai disse.
“É uma das coisas que acontece quando se sai daqui. Muitas coisas você esquece, porque sua mente não suportaria saber. Mas outras, você lembra. Sempre lembrará. Sua mente escolherá o que será melhor ser lembrado.” 
“Mudanças grandes são esperadas de mim. Se eu soubesse antes...”, disse Sebastian. “Mas não me sinto digno.”
“A negação é natural, até mesmo quando já se sabe tudo. Muitas vidas dependerão de você, Sebastian. O novo mundo precisará de você. Não será fácil, mas nada o é de verdade. Eu precisei passar pelo que passei para que você chegasse aqui. E você precisou passar pelo que passou para sentir o que está sentindo agora.”
Sebastian sabia o que sentia, e sabendo tudo, retirou a espada da muralha. Na lâmina não estava mais escrito Fúria. Estava escrito Remorso
“Quando o senhor recebeu a espada, ela ganhara o nome Determinação”, disse enquanto lágrimas escolhiam de seus olhos. “Sei o que preciso fazer. Preciso construir um novo caminho. Preciso mudar.”
“E o melhor de tudo é que agora você sabe que vai conseguir. Mas quando voltar ao outro lado, tenho certeza que não saberá mais. Esse tipo de saber não existe lá.”
Acessou a informação para saber de sua mãe, se ela estaria deste lado também, e compreendeu mais uma coisa. Seu pai não estava mais lá. Seu pai agora era sua mãe, e sorria como toda mãe que olha o filho sorri.
“A Verdade é muito maior.”, disse Sebastian, e virou-se novamente para a muralha. Antes de atravessá-la, antes de deixar para trás o saber absoluto, soube, mesmo antes de ver, que o nome da espada mudara novamente. Ela não se chamava mais Remorso.
Chamava-se Redenção.
Fim



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