RUBRO
Eu fui a primeira da família a não
acreditar na profecia. Antes de tudo acontecer nenhuma daquelas palavras jamais
tinham sido levadas a sério, então não foi uma posição difícil de manter. Alguém tinha de se agarrar à razão, não é?
Pois eu lhe digo uma coisa: A razão é a primeira a morrer quando tudo a sua
volta desmorona. Quando você menos espera não existe mais aperto de mão, abraço
ou cafuné. Se você encontra alguém, não o olha mais nos olhos... As coisas
ficaram dessa forma. Se quiser viver é melhor aprender a caminhar sozinho. Acostume-se
com o escuro, pois ele está em todo lugar agora.
Melhor parar de escrever... O som
do giz na parede faz barulho demais, e ela está vindo.
É mais fácil ouvir as coisas agora,
tanto pra mim quanto pra elas. Aqui é tão silencioso. Posso ouvi-la se
aproximando no andar de baixo.
Eu odeio giz.
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Os sons no andar de baixo sumiram.
Não sei se a coisa foi embora, ou se está dormindo, ou se gosta de me fazer
pensar em tudo isso. Mas tenho de ficar trancada nesse sótão, por via das
dúvidas.
Tenho tanta fome.
Encontrei estes pedaços de giz no
canto, dentro de uma caixinha colorida. Parece ter pertencido a uma garotinha.
Não havia ninguém na casa quando cheguei. Talvez a família que vive aqui já esteja morta. Não me surpreenderia,
depois de tantas outras mortes que vi antes de me esconder aqui. A única coisa
que me distrai é escrever, por isso pretendo continuar até quando conseguir... E
for sensato.
Como
disse, não acreditava na profecia, mas isto foi antes de ver tudo o que ela
descrevia acontecer. Entretanto muita coisa que aconteceu depois não fazia
parte dela. Não que isso importe. Basta dizer que tudo começou quando o papa em
Roma renunciou. A profecia falava disso. Depois
outro assumiu, e esse outro desapareceu dias depois. Ninguém achou o cara. Outra coisa...
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Algo lá em baixo deve ter caído. Achei
que parte da casa tinha desmoronado... Uma hora já se passou e ainda tremo. É
estranho isso... Quando pensei que estava tudo terminado, que a coisa tinha me
encontrado e que era o fim, me peguei incrivelmente calma. Havia aceitado o que
quer que tivesse sido reservado pra mim.
Mas continuei viva... E o medo que
tomou conta de mim depois só de pensar no que poderia ter me acontecido... Acho que nunca senti tanto medo assim na vida.
Bom, voltando...
Depois um meteorito atingiu a
Rússia. O estrago físico não foi grande, mas todo mundo entrou em pânico. Dava
pra sentir o cheiro no ar... Não sei explicar direito, mas tudo cheirava estranho.
Era mais como uma energia, na verdade, uma energia vingativa. Sim, quando penso
naqueles dias lembro-me de um sentimento de vingança...
Mas não éramos nós que estávamos
nos vingando.
Todos os que eram mais próximos a
mim estavam incontroláveis... Como se quisessem escapar. Só que tudo ficava
pior a cada dia... Não havia lugar pra se fugir. Estavam se afastando de mim.
Todo mundo cada vez mais distante.
Rumores de algo pior se
espalhavam... Havia vídeos e fotos em todo site que se visitava. Não se falava
em outra coisa nas redes sociais. Alguns falavam até de gente morta se
levantando...
Achei que fosse loucura... O mundo
parecia distorcido. Mas então vovó Mel não resistiu a tudo aquilo e morreu...
Duas horas depois ela estava de pé, mordendo minha sobrinha, bisneta dela, de
10 anos. Não conseguimos fazê-la parar de atacar... Morávamos no sétimo andar.
Eu a joguei.
Lá embaixo ela ainda se mexia.
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A coisa sabe que estou aqui. Tenho
certeza agora. Ela se arrasta lá em baixo, sussurra.
Deseja.
Tenho vontade de acabar logo com
isso e sair daqui. NÃO AGUENTO MAIS A FOME!
Mas não posso... Não consigo. Se o
que estivesse lá em baixo fosse a merda de um morto-vivo, eu poderia sair.
Quando é apenas um, ou até cinco, não tem tanto problema. Esmagaria a droga da
cabeça deles e estaria acabado.
Mas eu não sei o que está lá em baixo.
Ninguém jamais soube. Sobre essa coisa a profecia nunca disse nada. O que eu
sei é que o mundo acabou de vez depois que elas chegaram. Elas nos caçaram e
nos pegaram, e de um em um, o mundo acabou. Foi rápido. E provavelmente, minha
vez chegou.
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Por algum motivo que não sei
explicar, estas coisas não matam aleatoriamente. Elas escolhem alguém e o
perseguem até o inferno se for necessário. Já faz umas semanas que estou sendo
caçada. Esta casa foi o melhor lugar que pude encontrar.
Tive apenas um dia de calma e
silêncio. Até que vi, pela janela do quarto em que estava, as pegadas na neve vindo
em direção à casa... Desci até a sala... A porta da frente estava aberta, e o
rastro de neve se arrastava até a cozinha nos fundos.
Havia sangue na neve.
Foi quando ouvi a coisa pela
primeira vez. Havia rumores que as vítimas podiam ouvir o monstro falar. Nunca
foi uma certeza... Ninguém que tivesse escutado estava vivo pra confirmar. Mas
eu ouvi...
Corri na mesma hora. E senti o
desejo dela por mim aumentar a cada passo que eu dava. Tentei a porta da
frente, mas esta bateu e emperrou assim que a alcancei. Não podia ir pela porta
dos fundos.
Ouvi as panelas penduradas acima do
balcão despencarem.
Estava decididamente na cozinha.
Subi desesperada a escada até o
segundo andar, e depois subi para cá. Resolvi que quanto mais distante eu
estivesse maiores seriam minhas chances.
Estou aqui a 3 dias.
Percebi que já estava morta. A
coisa estava lá por mim, e tinha habilidades estranhas... Fechou a porta da
sala sem nem mesmo tocá-la, me trancou aqui. Se estou viva até agora é porque a
coisa assim quer, e eu também não tenho coragem de mudar essa situação...
E sobre a voz... É terrível. Acho
que nunca ouvi nada pior. Lembra o som de metais em atrito, mas é diferente...
É como se o som não fosse propagado pelo ar. Parece que eu escuto a voz diretamente
de outro lugar. Um som esganiçado, frio... Cortante. E desde que comecei a
ouvi-la, escuto sempre a mesma coisa, de novo e de novo. Ela sempre diz:
“Eu quero”
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Devo ter dormido umas cinco horas.
Já é noite. Foi bom, pelo menos não senti a fome queimar meu estômago nesse
tempo. Comer é só o que eu penso agora, e quase não me importo mais com a coisa
lá fora. Preciso comer. Mas para isso preciso deixar o sótão...
É isso o que ela quer.
Este é o último pedaço de giz que
sobrou. Percebo agora que estava perdurando minha estadia no sótão enquanto
ainda houvesse giz pra escrever. E agora que vai acabar...
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A coisa gritou lá embaixo. Um grito
de raiva, acho. Deve estar impaciente. E depois do primeiro grito indefinível,
mais um...
“Eu quero”
Tive vontade de gritar de volta pra
ela vir buscar o que ela quer de uma vez. Coisa maldita.
O que ela quer é que eu saia. Quer
me ver e quer que eu dê o primeiro passo. Não sei como sei disso, mas é a
verdade.
Vou acabar logo com isso. Estou
cansada desse medo, dessa solidão, da incerteza. E não quero mais sentir tanta
fome. Preciso descobrir e encarar a razão do fim do mundo. Quem sabe eu possa
entender um pouco mais de tudo isso e morrer mais informada... Se é que tem
alguma vantagem nisso.
Algo estranho começou a acontecer.
Mais estranho ainda. Algo novo. Uma nova parte do pesadelo está começando.
Minha...
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Samanta
finalmente escreveu a última frase no rodapé, próximo à porta. Ironicamente, ou
liricamente, quem pode saber as razões das coisas acontecerem da forma que
acontecem, o ponto final foi escrito com a última grama do último pedaço de giz
que havia na caixa. A hora tinha chegado. Ouvia o coração bater loucamente
espremido no peito, como se ele soubesse que aquela seria a última vez que
poderia cumprir com seu dever.
Caminhando
lentamente em direção a porta, pensou que o que estava sentindo devia ser a
mesma sensação que as pessoas que caminharam em direção a forca, para dentro de
uma câmara de gás, ou pela prancha de um navio, sentiram.
Estava
indo morrer, e sabia disso.
Perguntou-se
pela milionésima vez o motivo de tudo aquilo ter acontecido. A hora da espécie
humana tinha chegado? Era isso? Simples assim? Castigo divino? Há poucas
semanas atrás seus sonhos estavam no auge. Ainda havia tanta coisa que gostaria
de fazer, de ser... Tanto a se tentar. Tinha tanta vontade de viver. E tudo
seria desperdiçado.
Estava
parada diante da porta, com a testa colada na madeira, sentindo o ar quente que
exalava embaçar a peça lustrosa e esperando que o corpo reagisse à decisão que
o cérebro já tinha tomado.
“Abra
a porta”, ela pensou.
Finalmente
moveu a trava que atravessava a porta de um lado a outro. Uma viga de madeira
pesada, que tinha sido feita justamente para o que servira - manter o que quer
que estivesse do outro lado, do outro lado. Foi quando reparou nas feridas que
se abriram nos dedos que usou pra escrever seus últimos dias. Odiava giz, mas
não teve raiva do que sua aspereza fez com ela. Parecia natural que seus
últimos dias tivessem sido escritos a custa de sangue.
“Eu
vou morrer”, pensou.
O
último recurso de tranca do sótão era a bendita chave, do tamanho de uma mão, e
cheia de pontas retorcidas e afiadas. Segurar aquela chave dava a sensação de
ter a pele perfurada sempre. Girou-a
duas vezes. O segundo giro destravou a porta, que estalou pra frente fazendo um
barulho infernal, digno de um infarto.
Girou
o trinco com dificuldade. Cada centímetro de seu corpo tremia, como se implorasse
que não fizesse o que estava prestes a fazer. Então girou mais alguns graus e a
porta se abriu.
E
ao abrir é claro que a porta rangeu.
A
escada estreita e comprida despencava metros até o corredor escuro do segundo
andar. Era a sua prancha. E todo o resto era um vasto oceano de um azul sombrio
e infinito. Desceu, então, os primeiros degraus.
Teria
continuado a descida se não fosse pelo ranger da porta logo atrás. Virou-se de
costas, e o que viu, encarando-a de volta com olhos brilhantes rubros de
sangue, foi a coisa mais assustadora que já presenciara.
“Eu
quero!”
Samanta
gritou. Mas o fez com tanto pavor que não foi nem mesmo capaz de ouvir o
próprio grito. Disparou escada abaixo o mais rápido que conseguiu, tropeçando e
caindo nos últimos degraus. Percebeu que não sentia as pernas, tremiam tanto
que não havia sensibilidade alguma. Arrastando-se pelo corredor escuro arriscou
mais uma olhada para cima. O que quer que fosse aquilo tinha uma forma
humanóide e esguia. Não muito alta e nem um pouco ereta. Sua forma era torta,
como se estivesse quebrada... Torcida.
“Como...?”,
pensou em desespero. “Como veio do sótão? Acabei de sair...!”
Os
olhos vermelhos brilhavam iluminados, como pequenas luzes de natal. E não
perdiam Samanta de vista. E também havia aquela pele... Cada parte dela era
avermelhada. Um tom causado por queimaduras, assaduras... Em alguns pontos
despelava, e em outros parecia haver escamas.
Do jeito torto de que era constituída a coisa
avançou quatro degraus de uma só vez. Os braços retorcidos se equilibrando nas
paredes.
Samanta
sentiu suas pernas voltarem e levantou-se. Uma dor excruciante a torturou no pé
direito. Devia tê-lo torcido na queda. Atravessou o resto do corredor ao mesmo
tempo em que a coisa terminara de descer a escada. Descia agora a escadaria
principal, que levava a sala de estar.
“Eu
quero a sua força”
Sua
energia fora drenada em segundos, fazendo-a despencar rolando o resto do caminho.
“Eu
quero os seus sonhos.”
“Eu
quero trocar! Quero ser!”
Samanta
não era quase mais nada. Tentava fugir mesmo não tendo forças para respirar.
Arrastava seu corpo exaurido e pesado enquanto a coisa se aproximava cada vez
mais. Foi então que percebeu o quanto estava oca, e o quanto doía estar assim.
Tudo o que algum dia sentira, todas as suas melhores lembranças a tinham
abandonado. E o conhecimento de tudo o que quisera ser e tudo o que sempre desejara
conquistar lhe fora roubado no instante em que a coisa expressara seu desejo.
-
Olá! Consegue me ouvir? RESPONDA!
Samanta
ouviu essa voz. Uma voz humana! E estava vindo da porta de entrada. “Alguém
ouviu o que está acontecendo! Alguém veio me ajudar!”
Tentou
responder. Tentou dizer qualquer coisa, mas não tinha voz pra usar... Só
conseguiu chorar em silêncio e implorar que a pessoa entrasse. Então lembrou
que a coisa tinha trancado aquela porta dias atrás. “Por favor... socorro! Por
favor!”
A
voz da criatura foi horrível de ouvir. Insuportável.
“QUERO
SER!”
Samanta
viu os olhos vermelhos a encararem, tomados de fúria e desejo, na base da
escadaria. E então, com uma velocidade inimaginável, e ainda inteiramente
torta, a coisa avançou com os braços estendidos para ela.
Gritou.
E
continuou gritando enquanto sentia sua boca sendo aberta contra sua vontade. Os
dentes superiores e inferiores forçados em direções opostas pelas mãos do monstro...
Era
pior vê-la de perto. Pior.
***
Havia
um homem triste no sótão, usando branco. O sol brilhava lá fora enquanto ele
terminava sua leitura. Lera o que tinha no chão e nas paredes. Identificara a
última frase escrita tortamente no rodapé e sentiu-se afundar na tristeza ainda
mais.
“Minha pele está ficando vermelha.”
FIM
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