sábado, 21 de setembro de 2013

Desafio #2 Projeto Pena e Nanquim - Romance em três atos.

AS ASAS DE CHARLOTTE                                            

- Antonio Caetano -

Ato I – O dia em que a vi voar

Um
Os pardais Branco-Coroados sobrevoavam os céus do vilarejo de Cottageville, na Carolina do Sul, no início do verão. As crianças se acostumaram a ouvir histórias sobre a exuberante onda de pássaros, capaz de cobrir toda a extensão de céu que as nuvens abrigavam. Eram histórias sobre como a revoada trazia sobre suas asas os poderosos ares da mudança, e que por isso tudo podia acontecer. Inclusive o verão.
Os três meses desta estação eram sem dúvida os mais agradáveis e faziam do vilarejo um dos lugares mais badalados do estado. Os pardais ainda não haviam passado, portanto o verão e a temporada de férias eram bastante aguardados em Cottageville. E é preciso dizer, da mesma forma o era a Srta. Charlotte Eliza Bucknell, que já estava a caminho, acompanhada de sua família, para se hospedar no Whitecrowned.
O Hotel Whitecrowned concentrava grandes riquezas, e as distribuía muito bem, movendo o setor financeiro do vilarejo de tal forma que a população podia sustentar-se pelo tempo que durassem as baixas estações, e ainda tinham o suficiente de sobra para gastar nas atrações que seriam oferecidas pelo hotel no verão seguinte. Mas a fama do Whitecrowned pela alta sociedade da região devia-se principalmente a um ramo completamente extra-oficial, que consolidara o hotel como - utilizando aqui uma classificação arcaica, porém usada até hoje – “potência social”. O ramo de noivados.
O que acontecia era apenas que o hotel provia de uma maneira caprichosa, a reunião de muitas pessoas poderosas e influentes. Políticos e banqueiros, advogados da mais alta estirpe e fazendeiros. No Whitecrowned todos estes magnatas trocavam favores, faziam novas amizades, investimentos e transações que, muitas vezes, mudavam os ventos de todo o país. Aquele era um mundo de poder, apostas, vitórias e derrotas.  E qual melhor maneira de realizar investimentos e troca de favores do que a promessa de um casamento?  Tudo se arranjava facilmente uma vez que no hotel a oportunidade de exibir os filhos e filhas, os futuros esposos e esposas, era uma realidade mais que conveniente.  E é por esta importante realidade que devemos conhecer parte da história da Srta. Charlotte.
Alguns motivos faziam desta jovem solteira uma das pessoas mais aguardadas de Cottageville naquele verão de 1912.  O primeiro deles era a amizade de longa data do senhor seu pai, o Dr. Phillip J. Bucknell, com o famosíssimo proprietário do hotel, o Sr. Frank T. Boone, que convinha de ser seu padrinho.  
O décimo sexto aniversário recém completado de Charlotte era outro motivo que a fazia tão esperada. A jovem agora era uma flor desabrochada para a sociedade, uma nova pintura para se pôr os olhos sobre. É claro que Charlotte sendo filha e afilhada de quem era havia se tornado o partido mais cobiçado da cidade de Colúmbia, e porque não, da Carolina do Sul e redondezas.
Existe um fato interessante que todos devem saber sobre Charlotte Bucknell. A sua nada consensual aparência. Os cabelos castanhos muito revoltos, de cachos que deixavam sua camareira maluca cada vez que lhe era ordenado que os arrumasse, um nariz mais adunco do que sua mãe gostaria, e olhos de um mel escuro, mesmo quando todos da família tinham olhos verdes. Além de ser mais alta que todas as garotas da sua idade.
Há de se perguntar por que motivo deveria ser a aparência da jovem tão importante. Neste caso ela chega a ser quase como uma carta de apresentação. Pois, se as pessoas reparassem, veriam que cada centímetro do corpo de Charlotte demonstrava o quão à parte de tudo o que considerava supérfluo ela se portava, o quão diferente ela gostaria de ser e o quão livre ela gostava de demonstrar que era. Embora, é claro, para todos os outros, tudo era mera aparência. E a não ser que você a conhecesse bem, jamais perceberia a força da linguagem corporal que emanava daquela jovem. Mas, se você a conhecesse, não precisaria reconhecer linguagem corporal nenhuma. Ela não poderia se importar menos com as tradições do hotel, com o fato de ter completado dezesseis anos e de que deveria estar noiva a tempo da primavera.


Dois
O Nash Rambler balançava-se repetidamente enquanto descia pela estrada de terra que levava a Cottageville. Os quatro membros da família Bucknell encontravam-se todos acomodados e confortáveis dentro do luxuoso veículo, enquanto que o segundo veículo os seguia dez metros atrás, levando a bagagem e a ama. Passariam todo o verão no hotel, participando de jantares, bailes, banhos de sol e qualquer outra atividade que estivesse programada. O que significava que, apenas um carro para a bagagem, para os padrões a que estavam acostumados, era realmente muita economia. Assunto este que deixara a Sra. Bucknell reclamando com o marido por quase toda a viagem. A mãe de Charlotte, de primeiro nome Alice, estava tão nervosa com este verão quanto se podia estar. Charlotte até poderia sentir-se penalizada se não tivesse sido o alvo principal de passatempo da mãe durante a viagem.
“O que você tanto escreve Charlotte?”, perguntara a Sra. Bucknell em sua centésima tentativa de um diálogo decente.
Charlotte nas últimas horas armara-se de seu lápis grafite e de seu caderno para escrever. Ela os carregava para onde quer que fosse, nas aulas de costura, piano, pintura e até mesmo nas de equitação. Qualquer tempo que sobrasse, mesmo que fosse um minuto, era tempo suficiente para Charlotte começar a escrever. Seus tutores já haviam reclamado sobre isso com os pais dela, mas os dois, por mais que não quisessem admitir, haviam desistido à longa data de separar a filha daquele caderno.
“Muita coisa”, respondeu Charlotte sem ao menos levantar o olhar.
Alice Bucknell suspirou impaciente.
“Já conversamos sobre suas maneiras de conversação, minha querida! Quantas vezes eu terei de lembrar-lhe? Respostas curtas e rápidas são a pior maneira de se manter uma conversa agradável. Além do mais, eu não perguntei o quanto você escreve, e sim o quê.”
“Não estou a falar com o duque, mamãe. É só a senhora.”, disse Charlotte com a mesma postura.
Peter, o irmão de Charlotte de dez anos, deixara escapar uma risada por entre os lábios. Ele era sempre muito quieto, introspectivo, mas gostava das “estranhezas” da irmã e se divertia com elas. E ela gostava de diverti-lo.
“Sinceramente, Charlotte! Não sei mais o que posso fazer para que você me respeite. Não vejo a Srta. Katherine e a Srta. Lisa comportando-se dessa forma com as mães delas. Deveria se espelhar mais no exemplo das meninas. Mas, ao invés disso, esnoba a amizade delas sem o menor remorso.”   
“Katherine e Lisa – disse os nomes das garotas em tom de chacota – não conseguem passar um quarto de hora sem se olhar nos espelhos da casa pelo menos dúzias de vezes! Se elas forem o melhor tipo de amizade que eu posso conseguir mamãe, então acredito estar muito bem do jeito que estou. Muito obrigada.”
“Vês a insolência com que a nossa filha me trata Phillip?”, exaspera-se Alice.
“Charlotte...”, Phillip chamara a atenção da filha distraidamente. Ele viajava no banco do carona, conversando com Bruce, o motorista da família por duas gerações. Por toda a viagem os dois conversaram sobre a paisagem, o tempo, sobre as raças de ovelhas que cruzavam o caminho na estrada e de como os vilarejos que ficaram para trás tinham suas idiossincrasias bonitas de se reparar. Phillip já devia ter feito este percurso antes incontáveis vezes, mas como ele mesmo dizia, cada vez era única. 
Para Alice, toda a viagem trataria de noivar Charlotte com o melhor partido em que conseguira pensar. Não parava de declamar a ladainha sobre William, sobre os pais de William, sobre os estudos de William e sobre como William vencera competições de hipismo, e de como William era o melhor em tudo o que fazia. Charlotte já detestava o som do nome de William e não poderia imaginar castigo maior do que se casar com ele e ter de conviver com aquele nome pelo resto da vida. Provavelmente até batizar seu primeiro filho com o mesmo nome. Não, se isso acontecesse a ela, conheceria o inferno de Dante.
Já para ela aquela viagem representava o início de uma nova era. Charlotte conseguia sentir em cada centímetro de pele que grandes coisas a esperavam. E não era um casamento. Era algo maior.
É importante dizer que o Sr. e a Sra. Bucknell não eram exatamente como todos os outros membros da alta sociedade que encontrariam em breve. Essa gente sim era de um nível de aristocracia e de mesquinhez que só os de altíssimo nascimento são capazes de ser. Os pais de Charlotte poderiam ser considerados vanguardistas demais para alguns, mas não o suficiente para Charlotte. Afinal havia interesses, tradições e reputações herdadas que precisavam ser zeladas a qualquer custo.
“Não achas mais fácil ler do que escrever, querida, nas atuais circunstâncias? Estamos tremendo feito uma geléia dentro dessa caixa a mais tempo do que eu imaginava que seria.”
“Todos os livros ficaram guardados nas malas.”, respondeu Charlotte ainda escrevendo. Se você conhecesse Charlotte, teria reparado nos gestos que ela faria naquele exato momento, seu corpo representando de forma simples que estava prestes a alçar vôo... De alguma forma. Esticou a cabeça para trás, olhando para o teto do veículo, como alguém que tenta lembrar-se de algo, inspira o quanto o espartilho a deixa inspirar e estufa o peito, dizendo.  “E além do mais... O mundo lá fora está cheio de idéias fascinantes, mas nenhuma delas é minha. Aqui estão as minhas idéias.”
“Tenho medo só de imaginar que idéias são essas.”, disse Alice ajeitando a posição do chapéu, inclinado para a esquerda.
Charlotte ergueu o olhar para a mãe pela primeira vez em horas, e disse sorrindo.
“A senhora provavelmente teria.”

Três
Atravessavam o vilarejo de Cottageville. O Sr. Bucknell estava eufórico, apontando cada casa, monumento e loja da cidade para os filhos. Charlotte observava interessada. Os cidadãos paravam seus afazeres e suas caminhadas para ver o carro descer a rua. As mulheres sorriam e acenavam dando boas vindas, os homens, igualmente sorridentes, tiravam os chapéus e os punham sobre o peito se curvando levemente.
O Whitecrowned não se localizava exatamente em Cottageville, como antes Charlotte pensara, mas a aproximadamente um quilômetro ao sul, descendo o vale. Já se podiam ver os prédios longos e rebaixados da estrutura, refletindo pelas janelas a luz poente do fim de tarde.
Um som alto e grave aproximou-se rapidamente.
“Está ouvindo, Bruce?”, perguntara Charlotte.
“Acredito que sim, senhorita.”
O som vinha da direção do bosque, à leste de Cottageville, diretamente para eles.
“Será que...”, foi então que viu uma nuvem negra avançando rápido vindo da mesma direção do som. Não demorara nem dois segundos para perceber que não era uma nuvem. “O bando! A revoada de pardais está vindo!”
“Charlotte?”, chamou Alice.
“Pare o carro!”
Calculou que só haveria um meio de ver o fenômeno de perto, e a forma como se imaginou fazendo isso a encheu de excitação. Quando o carro parou, desceu e saiu correndo.
“Charlotte! Mas o que...?”, gritou Alice.
Charlotte não chegara a ouvir o final da sentença. Descera correndo a passos largos a colina que separava o vilarejo do hotel. A cada passo que dava sentia que não caía por muito pouco. Perdera os sapatos e o chapéu durante o percurso.
Os pardais Branco-Coroados voavam rápidos e ficavam mais próximos a cada segundo, e a cada segundo a euforia de Charlotte aumentava. Não entendia os motivos de estar fazendo aquilo, mas sabia que de alguma forma precisava fazê-lo. Algo em relação àqueles pássaros a atraía. Algo que a encantava e despertava nela coisas que não havia pensado antes, e coisas que mesmo já tendo pensado, não entendia.
Alcançara um campo de centeio no mesmo instante em que se viu afundar por uma escuridão precoce para aquele fim de tarde. Os pássaros cobriram a superfície da plantação por completo, um mar de sombra, um furacão de bater de asas. Uma urgência que só eles poderiam entender o motivo.
Charlotte desenrolara o xale que mantinha cobrindo a cintura do vestido, e o erguera com os braços abertos, como se voasse.  E era como se sentia. Voava e sentia como se si entregasse. O vento que abraçava seu corpo a impulsionava. Voava e sentia como se exigisse um direito que não possuía. Seu sangue quente era bombeado velozmente pelo corpo. Voava e sentia-se invencível.
E o era, pois sentia.
Reparara que, ao mesmo tempo em que os pássaros tinham um sentido e fluxo determinado, realizavam em seu vôo pequenas mudanças de velocidade, de altura. Lembravam um cardume de peixes nadando no azul escuro do oceano, desviando de predadores.
Mas logo foram embora. Seguiam em busca de um verão mais quente e mais farto que o da Carolina do Sul. Em busca de melhores condições, de uma vida melhor.
“Carreguem-me com vocês!”, pensou a jovem.
Tão logo fizera seu pedido em pensamento, e tão logo saíra do campo de centeio, tropeçara em algo, caíra e rolara alguns metros à frente.
Escutara alguém assustado, provavelmente por tê-la visto cair, e os passos desse alguém pisando firme na grama. Ao erguer a cabeça vira um rapaz aproximar-se desajeitado, com a mão erguida e o rosto afobado, vermelho de preocupação.
“A senhorita está bem?”







Ato II – Quando percebi que podia voar, e tive medo por isso.

Quatro
“Estou sim...”, respondeu Charlotte ofegante. Aceitara a ajuda do rapaz estendendo-lhe a mão. De pé, percebera que tinha se enrolado inteira no xale durante a queda, e estava mais preocupada em se livrar dele sem cair novamente do que reparar melhor no rapaz.
“Tens certeza? A senhorita te - teve uma queda séria...”
 “Está tudo bem. Por favor, não se preocupe. Eu só tropecei em alguma coisa...”
 “Ah sim. Eu vi”, disse ele, recuando para mais próximo da plantação, abaixando-se e pegando um livro. Charlotte parara para reparar melhor no rapaz. Provavelmente tinha sua idade, cabelos louros escuros e lisos como os de um bebê, cortados curtos. E olhos azuis, também de um tom escuro. Tinha um jeito bem inquietante. Parecia estar sempre apressado, como se quisesse livrar-se da situação em que se encontrava o mais rápido possível. Mesmo com uma dor terrível no joelho e arranhões no punho esquerdo, Charlotte pegou-se se divertindo observando o rapaz que parecia ser capaz de fazer e dar qualquer coisa para não estar ali. “A s-senhorita tropeçou n-nisso aqui...”
Ah, e ainda havia a gagueira.
“Romeu e Julieta”, leu Charlotte o título do livro que o rapaz erguia, entortando a cabeça. “Bom, ao menos não fui a primeira dama a cair por essa história. Mas acredito que devo ter sido a primeira a fazê-lo literalmente, não é mesmo?”
Era um comentário para quebrar a tensão, mas o rapaz pareceu não entender. Ou não gostar.
“A senhorita tem certeza de q-que está t-tudo bem?”, insistiu ele, reparando no leve sangramento dos arranhões no punho de Charlotte.
“Bom Deus! Estou bem!”, disse sorrindo. “Sobreviverei, juro!”
“Está c-certo”, disse ele em um meio sorriso, baixando a cabeça.
“Meu nome é Charlotte Eliza Bucknell!”, disse a jovem, desta vez ela lhe estendendo a mão.
“James.” disse o rapaz, aceitando o cumprimento.
Charlotte percebera que o jovem ocultara seu sobrenome, mas não dera importância.
“Estavas aqui para observar os pardais, James? Ou só para encher sua vida com um pouco de tragédia?”
“Tragédia?”, perguntou ele aparentemente confuso. “Só vim aqui para ler um p-pouco. Não s-sabia que os pardais vi-viriam hoje. Não é grande coisa.”
“Como não? Acho que o vôo deles foi a coisa mais maravilhosa que já presenciei!”
“Eles v-vem e vão sempre”, disse James de olhos baixos, mas fazendo gesto de pouco caso com mão livre. “E é bom ter cuida-dado. Ficar abaixo de tantos p-pássaros durante o vôo... A senhorita sabe.”
Charlotte achou graça quando James começara a corar ferozmente. Imaginava a figura que devia estar fazendo, toda amarrotada, ferida, com os cabelos mais bagunçados que nunca sem o chapéu para segurá-los, e descalça, com os dedos dos pés despontando para fora das meias tão delicadas. Não podia culpar o pobre rapaz, mas nem por isso tinha alguma pretensão de pisar em ovos com ele, estava tudo muito divertido, por isso resolveu tripudiar um pouco.
“O seu medo é de que eles evacuem na sua cabeça, não é mesmo? Mas não precisa, ainda seria um preço baixo a se pagar para se estar aqui e ver tão de perto. Imagino o quanto deve ser sem graça vê-los voar debaixo daquela varanda de hotel.”
Charlotte não achara que fosse possível que James corasse ainda mais, mas ele o fez.
“Estás hospedado no Whitecrowned?”, perguntou ela.
“Sim... e não...”, respondera ele.
“O senhor é bem esquisito, não é mesmo?”, disse Charlotte com uma pachorra que só ela mesma poderia ter. E ofereceu seu braço a James, sorrindo. “Pode me acompanhar?”
Mesmo extremamente intimidado com a postura de Charlotte, James logo aceitara o braço da jovem, com todo o cuidado e respeito que era esperado de um rapaz para com uma dama. E juntos abandonaram o esvoaçante campo de centeio sob a luz do por do sol, em direção à realidade que os aguardava.

Cinco
Mais tarde naquela noite, quando todos já estavam acomodados em seus quartos, Alice gritara como nunca antes com Charlotte. A menina já estava acostumada, ao contrário da mãe que a cada vez tinha de lidar com atitudes sempre mais insolentes da filha.  Mas antes disso, mais cedo, quando James e Charlotte alcançaram a bem construída estradinha de pedra que levava aos portões do hotel, encontraram Bruce a postos e nervoso, a meio caminho, aguardando que Charlotte chegasse para lhe entregar seu chapéu e calçados. Por mais que a menina vestisse seus utensílios todos no devido lugar (apoiada no ombro do incrivelmente tímido James), não havia como negar que no mínimo ela devia ter participado de uma revolta no mercado de peixes. E foi isso o que mais revirou as entranhas de Alice. Pois a apresentação de Charlotte dar-se-ia ali, naquele exato momento.
A família Bucknell estava sendo recepcionada com toda pompa e circunstância na grande varanda na entrada do hotel. Havia pelo menos três famílias conhecidas, funcionários servindo bebidas e petiscos, e tio Frank. Como dono de um hotel como o Whitecrowned, Frank Boone precisava atender a muitas exigências de etiqueta, mas para alguém com essa posição ele era bem despachado, e famoso por não se preocupar muito com nada. Talvez por isso fosse tão amigo do Sr. Bucknell. Frank, é claro, notara o estado em que Charlotte chegara, mas não se fez de rogado e a cumprimentou com o maior sincero sorriso, já característico dele. Ao contrário dos outros presentes, que não pareciam crer na visão diante deles.
Sob tantos olhares, Charlotte nem mesmo percebera quando James se fora, apenas reparara que seu braço já não a estava acompanhando. O rapaz nem mesmo cumprimentara os presentes. Dando um sorriso de canto de lábio – o que provavelmente o horrorizado com seu estado, William, pensara ser por causa dele – Charlotte notara que gostava cada vez mais daquele misterioso James.

Seis
Ao longo da semana, Charlotte tivera outras oportunidades de conversar melhor com seu futuro provável pretendente. Não por vontade própria, pois a cada palavra que eles trocavam, Charlotte percebia o quão distante de tudo o que valorizava e admirava William era. Em verdade, afirmar que eles trocavam palavras era elevar muito a normalidade da conversa. Apenas William falava, e Charlotte não só estava enjoada de ouvir tantas vezes o nome de William, como já estava cansada de escutá-lo narrar todas as suas aventuras pelo país, participando de competições de hipismo, ou gincanas de debates, ou em sessões de caça ao tesouro, que era como ele costumava chamar suas viagens com o pai com o intuito de arrematar peças históricas em leilões. Nunca uma caça ao tesouro tivera uma conotação mais chata. Quando William não falava dele, falava de alguém da sua família. O primo, por exemplo, estava em Estocolmo, na Suécia, competindo nos Jogos Olímpicos, na categoria de hipismo. Visivelmente, a seu ver, toda a família de William tinha uma paixão doentia por cavalos. E havia também a tia, dada como morta no terrível naufrágio do Titanic há quase três meses.
Foi naquele mesmo dia, após o almoço, depois de livrar-se da companhia de William e partir em direção aos jardins com seu caderno, que Charlotte reencontrou James. Ele ainda lia Romeu e Julieta.
“Eu já estava começando a pensar que o senhor fosse um fantasma”, disse sentando-se no batente que rodeava a fonte, ao lado dele. “O fantasma do Whitecrowned! Aquele que geralmente é visto assombrando os jardins e os campos, que lê tragédias, e derruba jovens damas indefesas.”
“Eu não a d-derrubei!”, disse ele, milagrosamente sorrindo. Mas ainda assim corado.
“Ah, derrubastes sim.”, dissera Charlotte.
Por um momento James abaixara a cabeça e fingira que retomara a leitura, mas percebera que seria muito rude de sua parte tal atitude, então voltou-se para sua companhia.
“Porque sempre a s-senhorita comenta comigo sobre t- tragédias?”
“Ah! Como estás a ler Romeu e Julieta...”
“E o que Romeu e Julieta têm haver com tragédia?”, perguntara ele nervoso de uma tacada só, sem gaguejar pela primeira vez em uma conversa com Charlotte.
Romeu e Julieta é uma tragédia! Esse romance foi baseado na famosa peça de Shakespeare. Deve ser a tragédia mais famosa... Espere um momento, não conheces essa história?”
“Bom, é a primeira vez que a leio”, respondeu James confuso. “Então quer dizer que o final é triste?”
“Sim, teoricamente sim, uma vez que eles morrem no final”
James parecera não acreditar no que acabara de ouvir. Sua decepção era tão grande que até mesmo seu rosto perdera mais o viço.
“Achei que era só um romance bobo... Que eles conseguiriam.”, e largou o livro no assento.
“Ah meu Deus”, exclamou Charlotte rindo exasperadamente. “Vais abandonar a leitura, não vais?”
“Qual o sentido agora? Quero dizer... Eles morrem.”
“Bom, em primeiro lugar, perdão por ter contado o final. Mas o senhor é a primeira pessoa que conheci que não sabia como essa história acabava, inclusive antes de lê-la. E em segundo lugar, não interrompa a leitura! É uma história triste, sim, mas também é linda. Precisas lê-la!”
“Suponho que sim.”
“JAMIE!”, alguém gritara.
James virou o pescoço rapidamente para trás e levantou-se de um pulo.
“J-já estou in-indo!”
“Estou aliviada. Então não és mesmo um fantasma!”
“Re-receio que não”, disse pegando o livro. “Com a sua licença, Srta. Charlotte.”
E quando já estava a alguns metros de distância, virou-se para Charlotte e disse ao segurar o livro com as duas mãos.
“Lerei.”

Sete
Foi com a ajuda da camareira de sua suíte que Charlotte descobrira quem era James. O rapaz morava no Whitecrowned, mas não como hóspede. James Barrie, dezessete anos, era filho de um dos cozinheiros do hotel. O momento em que fora chamado na fonte, naquela tarde, provavelmente tinha sido uma das ocasiões em que era solicitado para ir a cidade comprar algum ingrediente que faltava na cozinha, ou para ajudar a descarregar as compras na carroça. Embora, pelo menos fora o que a camareira dissera, o Sr. Frank Boone não gostasse que ele fizesse esse tipo de serviço. Tio Frank havia, por falta de palavra melhor, adotado James. O pai do rapaz estava no hotel desde quando este abrira as portas, fazendo do velho cozinheiro um dos funcionários mais antigos da casa. Tio Frank afeiçoara-se a criança, e desde sempre gostara de participar da vida do garoto, o educando, vestindo, emprestando livros. E assim vivera James, passando todos os anos de sua vida ali.
Desde que descobrira isso, o interesse de Charlotte por James aumentara. Passaram a encontrar-se bastante nos próximos dias. Primeiro sempre no mesmo horário, poucas horas após o almoço, na fonte do jardim, e depois, sempre que havia chance. Em uma das longas caminhadas que fizeram no perímetro da propriedade, Charlotte perguntara como alguém que era educado pelo tio Frank, e que lia tudo o que o mesmo lhe enfiava debaixo do nariz, não conhecia o famoso final de Romeu e Julieta.
“Nunca vi referências nos outros livros que li sobre essa tragédia, e o Sr. Boone jamais comenta sobre a história, nem sobre um personagem sequer, antes que eu termine a leitura.”
Charlotte também percebera que James não era gago, mas gaguejava quando estava nervoso, ou quando se sentia pressionado. Já fazia um bom tempo que ele gaguejara pela última vez em sua presença.
“E por falar nisso, a história é realmente muito bonita. Triste, mas bonita. Não estava acostumado a ler histórias em que o final não fosse feliz, acho que foi por isso que o Sr. Boone me deu esse livro”
Com o passar das semanas, Charlotte achava cada vez mais difícil se desvencilhar dos compromissos sociais que sua estadia no hotel exigia. Como não era hóspede, e sendo filho de quem era, James não participava de nenhum deles. Muito mais por falta de vontade do que por proibição, posto que tio Frank insistisse que ele fosse mais participativo. Alice já estava incontrolável, e chegara a proibir Charlotte de perder seu precioso tempo na companhia do filho do cozinheiro. Tiveram uma discussão séria naquela noite. E no dia seguinte, Charlotte e James se viram mais uma vez.
Passaram horas maravilhosas naquele primeiro de Julho. Correram pelo campo de centeio como se alguém os perseguisse. Riam como se houvesse apenas aquele dia para rir. Não havia tal coisa como o tempo. Só eles.
James a levara para o seu local preferido, à sombra de um salgueiro, perto de um riacho. Sentaram em uma raiz alta e Charlotte começara a ler passagens escritas de seu caderno. E ela jamais lera o conteúdo de seu caderno para ninguém.
“Penso na minha vida como uma história, e gosto de imaginar que alguém em algum lugar estar folheando as páginas de minha vida. Nunca gostei de ler histórias monocromáticas, previsíveis, sem conteúdo, por isso não quero que minha vida seja assim.”
Parara para observar James, e em como ele absorvia tudo aquilo. Ele parecia beber de suas palavras.
“Quero que minha história seja cheia de cores, que seja imprevisível, que possa instruir alguém sobre algum assunto. Minhas atitudes se resumem a sempre manter a história de minha vida o mais atraente possível para o meu leitor imaginário, porque só assim, acredito eu, ela será atraente para mim”
James acariciara seu rosto com as costas da mão. E ela o olhava intensamente. Ele estava tão mudado. Tão melhor.
“És incrível, Charlotte. Perto de você, sinto que posso voar”
Seus rostos estavam muito próximos. Um esquilo perdido e barulhento interrompera um beijo que estava prestes a acontecer. E a realidade caiu sobre eles.
“Já é noite! É melhor voltarmos.”, disse James. 

Andavam de mãos dadas, mal acreditando no que seus corpos faziam antes mesmo de palavras serem ditas. Sabiam o que sentiam. E bastava esse saber calado para se fazer construir aquele momento.
Estavam bem próximos do hotel quando uma multidão de homens segurando cães em coleiras aproximou-se. O cheiro de violência tomava conta do ar. O casal Bucknell destacou-se na multidão. Alice os alcançara e abraçara Charlotte.
“Onde esteve, minha filha? Desaparecera desde a manhã! Estávamos pensando o pior, íamos procurá-la! O que houve Charlotte?”
Antes que Charlotte pudesse entender o que acontecia, e explicar, William aproximara-se e dera um soco no rosto de James.
“SEU PORCO DESGRAÇADO!”
“JAMES!”, gritara Charlotte. “Mas o que...?”
“Esse rapaz lhe fez algum mal, minha filha?”, perguntara Phillip. Parecia ter chorado.
“Não! Do que o senhor está falando?”. William avançava para James, pronto para chutá-lo. Charlotte soltou-se dos braços de Alice e empurrou o futuro possível pretendente. “PARE AGORA MESMO!”
“Charlotte!”, exclamara Alice horrorizada. “O jovem Will veio para defender sua honra!”
“Quando minha honra precisar de proteção, eu a defendo! O que estão pensando? James não me fez nada, estávamos passeando, só isso!”
James levantara lívido. Seu lábio sangrava.
“Quem pensa que é, rapazinho, para sumir com minha filha?”, guinchara Alice.
James nada disse. Parecia incapaz de qualquer ação. Charlotte não podia deixar as coisas irem pelo rumo que estavam indo.
“Eu gosto dele. Ou melhor, eu o amo!”, e virou-se para James. “Diga a eles. Diga a eles que serias incapaz de me fazer mal.”
Ninguém falava nada. Até mesmo os cães estavam quietos. E James parecia mais perdido que todos. O rapaz olhava para Charlotte, e chorava.  Olhava em volta, e parecia engasgar a cada respiração. Era tudo o que fazia.
“James, essa é uma das primeiras situações na minha vida em que não depende só de mim conquistar alguma coisa. Não posso fazer isso sozinha.”, chorava Charlotte. “Preciso de você.”
“S-sinto mu-muito!”, As lágrimas rolavam pelo rosto do rapaz. “L-lamento.”
E correra em direção à porta dos fundos do hotel.













Ato III – O dia em que voei

Oito
Três dias se passaram desde a última vez em que vira Charlotte. Desde o dia em que a perdera. E desde esse dia quase não saíra do quarto. Muitos já tentaram falar com ele; seu pai, o chef de cozinha, e Judith, a camareira. Estes tentaram consolá-lo, mas outros vieram com o mero intuito de saber o que acontecera naquela noite. Em verdade, a única pessoa das quais ele sabia que viriam falar com ele, e que não viera ainda, batera em sua porta naquela tarde.
O Sr. Frank entrara sério e altivo assim que James abrira a porta. O saudoso mentor e mestre deixara claro o quanto estava desapontado, e de como jamais esperara que James tivesse se comportado daquela forma. Mas o que surpreendera James de verdade fora o que o dono do hotel falara logo depois.
“Sabe, meu jovem, intercedi por você. Phillip Bucknell é um amigo querido, ao qual estimo muito. Disse a ele e a sua digníssima esposa que você é como se fosse filho meu, e que sua honra era algo além de qualquer questionamento. Mas receio estar enganado.”
James estava sentado na cama, olhando para os próprios pés. Desde que vira Charlotte chorando lá fora percebera que nada mais teria capacidade de feri-lo com tamanha intensidade.
“Tantas conversas que já tivemos! Tantos livros que indiquei que lesse! E deixastes a dama em apuros! A dama suplicara apoio e virastes o rosto. Conheço aquela menina desde o dia em que nascera. Charlotte é uma guerreira, e a vejo batalhar por tudo em que acredita desde o dia em que aprendera a falar. Depois que fostes embora, o Sr. William Connolly ainda tentara se aproximar dela. Mas ela o chamara de verme na frente de todos, e disse que de pessoas como ele ela só desejava uma coisa. Distância. Aquele rapaz é simplesmente o solteiro mais desejado da estação. E ela o teria a qualquer momento, se assim desejasse. Mas não, dentre todos os outros, ela quis você. O que me diz?”
Será que ele não entendia? Será que ninguém entendia? Como James poderia estar com Charlotte? O que ele tinha? O que ele era?
“A família Bucknell está nos deixando hoje. Em poucos minutos, eu diria. Charlotte não deixara seus aposentos desde aquela noite. Uma flor murcha. Em pleno quatro de julho! Perderão todos os festejos da festa da independência.”
O Sr. Frank ainda esperara que James falasse algo. Quando não obtivera sucesso, dirigiu-se à porta. 
“É uma pena que esta história termine assim”, disse antes de se retirar.

História. Fora preciso quase meia hora para que James percebesse o erro que cometia. E não havia tempo a perder. Talvez já fosse tarde demais. Saíra desembestado do quarto, sem pensar em mais nada, sem nem ao menos pensar em melhorar sua aparência deplorável.
Subira tropeçando as escadas até o salão de festas e disparara em direção a porta de entrada. Esbarrara em senhoras e senhores da alta sociedade, derrubara bandejas das mãos de garçons. Nada mais importava. Em algum lugar do salão ouvira a voz do Sr. Frank para ele, gritando que conversara com o motorista Bruce, e de como este dirigiria bem devagar.   
Nos jardins de entrada muitas pessoas encontravam-se sentadas em longas toalhas, preparando piqueniques, na expectativa dos fogos de artifício logo mais à noite. Pulara por todos eles. Voara por sobre eles.
Logo o tal de William erguera-se na esperança de impedi-lo.
“Onde pensa que vai seu por...”
O soco de direita de James veio com a força de sua euforia, de sua vontade de falar com Charlotte. Anos mais tarde William ainda negaria este episódio com toda convicção do mundo. James vira o carro subindo lentamente a estrada em direção a Cottageville. 
“CHARLOTTE!”
O carro continuou seu percurso. Ele ainda ouvira os sons exasperados das pessoas ao redor, reprovando seu comportamento rude. “Para o inferno, vocês!”, pensara o rapaz.
“CHARLOTTE!”
A estrada fazia uma lombada em semicírculo diante dele, e só havia uma chance de alcançar o carro. Correu cortando pelo campo central, voando por cima de mais e mais toalhas de piquenique.
Chegara à estrada jogando-se na frente do Nash Rambler, parando-o com as mãos no capô. Sentiu-as queimar, mas não deu importância. Podia vê-la sentada no banco de trás. Como era linda!
“Charlotte, perdoe-me! Por tudo o que é mais sagrado, me perdoe! Eu sou um idiota! O mais idiota dos idiotas! E um mentiroso! Lembra quando eu disse que não me importava com o vôo dos pardais? Eu menti. Não sei bem o porquê, mas eu menti! Todos os anos, na mesma época, sento-me próximo ao campo de centeio e espero a chegada deles! Esperava que eles me trouxessem alguma coisa, que mudassem algo em mim. Algo que nem eu sabia direito o que era, mas sabia que não se encaixava. Sei agora que é o meu medo. Meu medo da vida. E eu estava certo, sabia? Estava certo em esperar que eles me trouxessem minha salvação. Pois eles me trouxeram você!”
Charlotte descera do carro, e não encontrara resistência da família por isso. Vestia-se como devia se vestir, seus cabelos revoltos presos por baixo do chapéu inclinado. O olhava com uma expressão de quem não acredita no que está vendo.
“Eu a amo, Charlotte. Amo-a desde o primeiro momento em que meus olhos pousaram em você! Quando vi seu corpo e seu espírito livres voando junto com os pardais, soube naquele momento que você era quem eu estava esperando. E desde então passei a amar cada vez mais tudo em você.”
“O seu andar, e de como não parecia de forma alguma tocar o chão. Mas não de um jeito delicado! Não, de um jeito feroz! E o seu olhar. Percebi o quão inquieto ele é, e de como ignora propositadamente as coisas que o desagradam. E de como seus olhos encaravam os meus sempre que eu falava. E de como quase sempre olham o horizonte, não de maneira esnobe, mas de uma maneira sonhadora. Como alguém que sabe o que quer, o encara e não o perde de vista. Eu te quero Charlotte! Bom Deus, como eu te quero!”
Charlotte chorava, e seu riso iluminava tudo em volta.
“Percebi que todos esses anos tenho feito da minha vida a história mais monocromática, previsível e sem conteúdo que já se ouviu falar. E não quero mais isso. Quero você. E você, meu amor? És capaz de me perdoar? És capaz de retribuir o amor desse pobre coitado, louco de amor e de vergonha por ser tão idiota? Como Charlotte? Como quer que seja a história da sua vida?”
Charlotte estava já bem próxima a ele. Todos da família, e Bruce, haviam descido do veículo. Uma multidão de hóspedes assistia a tudo. Mas no mundo só havia Charlotte para se ver, e sua voz para se ouvir.
“Quero que a história da minha vida seja com você.”, disse ela radiante.
James não pôde segurar a felicidade que sentia. Avançou até ela, segurou-a pelos braços, e a tentou beijar, desajeitado. Teria conseguido se o chapéu de Charlotte não o atrapalhasse. Então o arrancou, jogou para longe, e o beijo aconteceu. Os dois precisavam daquele beijo, sabiam que sim. O primeiro de muitos. O beijo que encerra essa história e inicia outra.

NoveOitenta e três anos depois
O jovem James, agora com cem anos, terminara de narrar sua história a Jeena, sua neta mais jovem, de dezoito.
- Ao contrário de tudo o que se esperava, minha querida, os pardais voltaram naquela mesma tarde de quatro de julho de 1912. Abençoando nosso reencontro”
Jeena fez cara de descrente, e o contestou.
- Mas como? Assim tão cedo?! - Jeena era uma Charlotte de dezoito anos e cabelos curtos. Mais curtos que qualquer rapaz naqueles dias.
O jovem senhor sorriu matreiro.
 - Tudo bem, essa parte eu inventei. A volta deles ainda estava longe. Mas achei que a história terminaria bem se fosse assim.
- Dramaticidade de diretor de teatro! – rira Jeena. – A vovó teria gostado desse fim... Adorava uma extravagância aqui e ali, em pequenos detalhes. Dizia que...
- Que era mais gostoso atuar quando o próprio texto parecia ser um ator. Sim, ela dizia isso. Viu como essa cabeça velha está melhor? A caduquice pode ter me levado muitas coisas, mas não me levaram você, nem a minha querida Charlotte. E então? Acha que já tem material suficiente para o seu curta? É assim que chamam na faculdade de cinema, não é?
- É sim. É incrível. Tudo isso é incrível! Achei que teria de pesquisar por outras fontes, menos confiáveis e muito menos interessantes – disse Jeena, dando um beijo no Vô Jamie – Achei que... Achei que suas lembranças estivessem...
- Pelo jeito as coisas da vida possuem infinitas formas de se expressar, não é? – riu James - Eu te conheço, não conheço? Sei quem você é, e sei quem eu sou. E Charlotte! Todo o resto está por trás de uma neblina densa, pela qual eu agora não posso enxergar. Mas o que eu enxergo agora, e graças a você minha neta querida, é o que importa! O que mais importa! Minhas lembranças não estão mortas, elas ainda existem! Escondidas por trás dessa neblina, mas existem! E você me fez lembrar a mais importante delas! E mesmo agora, que estou indo embora, você perpetuará essas memórias. Muito obrigado por isso.
Naquela noite, James olharia o quadro para o qual Charlotte posara pouco antes de falecer, pendurado em frente à cama. Faceira, exuberante, com um corpo mais bem desenhado que muitas mocinhas por ai. Cabelos prateados. Como estava linda em seu vestido de gala. A mais bela e premiada cantora, escritora e atriz dos últimos tempos.
Fechara os olhos com a visão do quadro, e os abrira para a jovem Charlotte, o chamando enquanto voava pelos campos de centeio.

Fim

  

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